04.04.11
“TORNAGHI, Alberto. O que é cultura digital” – e o risco da perda de introspecção criativa e do revolucionário individual?
Sérvio Pontes Ribeiro
O buletim 10 “Cultura Digital e Escola”, da TV Escola, traz um texto de Alberto Tornaghi, o qual discute de fato traz várias questões importantes, mesmo que de amplo conhecimento. A visão de uma cultura digital decorrente da abertura de textos e idéias é um fato recente mas de grande impacto acadêmico. Nas ciências, ainda impera a necessidade de um crivo de três avaliadores anônimos, além do editor para que uma revista de reconhecimento internacional aceite um trabalho científico. Mesmo assim, a grande Física já tem seus jornais abertos, onde a publicação é de inteira responsabilidade do autor, e do leitor ao avaliar sua importância. Este é o princípio do “referee”, ou avaliador, reduzido ao referee-leitor. Entretanto, na ciência este modelo não decolou, pois fica o enorme trabalho de ler e criticar severamente cada trabalho lido. Diante do crivo editorial, mesmo que a leitura crítica ainda seja mandatória, há a certeza de que alguma análise prévia valida o texto em leitura como boa ciência.
Entretanto, esta formatação técnica e cirúrgica relacionada às publicações científicas não prevalece nas outras etapas da construção do conhecimento. Cada vez mais cientistas se agrupam em “chats” para discutir metodologia, análises de dados, ou mesmo para compartilhar dados e gerar trabalhos mais abrangentes. O grande amparo da cultura cibernética na ciência talvez seja mesmo a moderna filosofia de compartilhamento público de dados, e manutenção da privacidade/propriedade das idéias apenas.
Já na esfera educacional e de divulgação, a norma a valer e a rapidamente mudar o mundo é de fato o da auto-exposição. Este blog, e todos os outros, não são senão o próprio crivo do autor, solitário e extremo, um extremo oposto dos wikis, provavelmente. De um lado, seu valor de critério e conhecimento autoral, não referendado por ninguém. Do outro, nos wikis, o crivo constante e extremo da rede de usuários e construtores. Acredito bem que o modelo de referees clássico na ciência esteja no meio do caminho, e como solução mediana e consagrada, lá deverá permanecer e se otimizar mediante às novas ferramentas.
Destas novas ferramentas, o texto de Alberto Tornaghi trouxe algumas novidades técnicas bem como fatos novos para minha reflexão. A construção do BrOffice coletivamente foi tão inesperado quanto a maratona para o open office cingalês. Na verdade, nem tanto, pois já utilizamos uma fantástica ferramenta estatística aberta e construída/revista coletivamente, que é o programa R.
Por outro lado, exclusivamente sociobiológico, fica a pergunta de até onde isto tudo é novo, ou até aonde o mundo vai só mais uma vez se adaptando ao nosso “template” educacional inato. A experiência espetacular do Sugta Mitra de abrir uma tela de “touch screen” e obter em uma rua pobre na Índia um aprendizado extraordinário reflete isto. De fato, a capacidade biológica, portanto inata, de aprender, pode se manifestar mais livremente com menos bagagem cultural/tecnológica. Após aprender uma série de ferramentas, ficamos enrijecidos e menos aptos para novas ferramentas, enquanto que as crianças analfabetas estão plenamente abertas à descoberta. O mundo animal, em especial animais sociais, está cheio de experiências cognitivas coletivas relacionadas à novidades no ambiente.
Vivemos momentos de enormes e rapidamente mutantes novidades! Só sobreviveremos nos abrindo ao compartilhamento de informações, ao aumento da humildade e resignação, à socialização de nosso desenvolvimento pessoal.
Paradoxalmente, estas atitudes nos levam ao alcance de uma ferramenta que claramente pode nos lançar de cabeça ao individualismo e à (falsa) sensação de autonomia existencial, por um lado. Por outro, tão perigoso lado quanto o anterior, nos distancia da introspecção criativa, necessária para a geração autoral de algumas formas de conhecimento, e de aprendizado também.
Uma sentença logo ao final do texto, entusiasta, ilustra este risco de abordagem:
“Hoje se proíbem celulares na escola. Em breve, chamaremos de tolos os que não viam neles um objeto de conectar pessoas para que saibam e possam mais.”
Será que não precisamos desconectar para gerar, para expressar nosso pensamento individual, distante do coletivo, que sempre é contaminado pelos preconceitos e recalques sociais? Será que se radicalizarmos nesta “coletivação” da educação não estaremos calando, ou formatando os pensamentos destoantes, revolucionários, e criadores do novo? Onde estará o espaço para o real e saudável individual neste novo formato? Tornaghi não parece se importar tanto com isto em seu brilhante texto, porém.
Por mais fabuloso que o novo e quase infinito potencial de compartilhamento de conhecimento e informação pela cultura cibernética seja, é importantíssimo não perdermos o EU. É preciso lembrar que esta é só uma re-edição da revolução que foi a invenção da gráfica. Assim como os livros, ainda em voga e longe se tornarem obsoletos, todas estas ferramentas de acesso vão esbarrar na mesma parede: a impossibilidade do sujeito de absorver e refletir sobre todo o conhecimento humano disponível! Assim, por um lado ganhamos com a chance de utilizar a experiência em tempo real do outro, e seu aprendizado, uma trilha que, via a colaboração, não teremos que trilhar toda ou sozinhos ao menos. Por outro, não podemos permitir que deixemos de ser este “outro” com algum rico conhecimento para compartilhar! Assim, a busca pela integração no mundo real (e não com o tempo real) via algo que sabemos e botamos na mesa de trocas da vida não pode deixar de existir primariamente. Ainda mais, não podemos permitir o risco da perda de foco e concentração na produção intelectual introspecta, autoral, revolucionária e individualista!