03.10.10
Uma tradução de Dobhzanski - Parte 3 e final
Sérvio Pontes Ribeiro
Rogério Parentoni mais uma vez nos oferta uma pérola. Desta vez a tradução do clássico:
Dobhzansky, T. 1974. Chance and Creativity in Evolution. Pp. 307-338, IN: Ayala, F.J & Dobhzansky, T. Studies in the Philosophy of Biology. The Macmillan Press, London.
O mesmo segue abaixo publicado em três dias, em 3 partes. Boa leitura.
Parte 3 - Radiação adaptativa
Há vários exemplos de espécies que são muito afins e, claramente descendentes de um ancestral comum, que divergiram em seus modos de vida a fim de explorar oportunidades diferentes oferecidas por seus ambientes. Tais exemplos de radiação adaptativa são particularmente esclarecedores quando a divergência ocorreu recentemente em uma escala de tempo geológico. Os tentilhões de Darwin são exemplos clássicos e tão bem conhecidos que não é necessário mencioná-los aqui. A radiação adaptativa de moscas drosofilídeas é até mesmo mais espetacular embora seja menos conhecida. (Carlson, Hardy, Spieth and Stone 1970). O arquipélago havaiano tem 6 ilhas vulcânicas que abrigam 650 a 700 espécies de drosofilídeas. Destas apenas 17 ocorrem em outros lugares e foram provavelmente introduzidas pelo homem neste último século. As espécies remanescentes são endêmicas. A idade geológica das ilhas habitadas pelas drosofilídeas varia de 1 a 5 milhões de anos. Diversas ilhas mais antigas, até 15 milhões de anos, agora estão erodidas e provavelmente têm poucas se alguma espécie. É apenas conjectura falar sobre quando o ancestral ou ancestrais das espécies endêmicas chegaram ao Havaí, mas 15 milhões de anos pode ser considerado o limite superior.
A fauna mundial de drosofilídeas abrange pelo menos 2000 espécies. As endêmicas constituem 1/3 do total. A área total das ilhas havaianas é cerca de 1/3 da área da Holanda. Em lugar algum do mundo há um território desse tamanho que abrigue o número de espécies do Havaí. As endêmicas havaianas pertencem a 2 grupos- os gêneros Drosophila e Scaptomyza e seus derivativos. Ambos os gêneros ocorrem no mundo todo, mas as endêmicas “scaptomyzoid” são mais numerosas que as do restante do mundo. As endêmicas podem ter sido derivadas de apenas duas espécies ancestrais, uma Drosophila e uma Scaptomyza que alcançaram o arquipélago por transporte acidental a partir da Ásia ou da América, mais provavelmente do primeiro continente.
A diversidade morfológica, ecológica e comportamental das endêmicas havaianas supera às de Drosophila e Scaptomyza de qualquer lugar do mundo. As drosofilídeas maiores e menores são havaianas. Certas partes do corpo em algumas espécies sofreram modificações que quase chegam à emergência de novos órgãos. Os tarsos em forma de colher são estruturas encurtadas, achatadas e côncavas; tarsos em forma de garfo têm um apêndice longo desenvolvido no ápice ou na base do basitarso anterior; há espécies com tarsos cerdosos, em forma de clava, maçaneta, gancho e etc. essas modificações são encontradas especialmente em machos e parecem ser usadas em rituais para corte. Os comportamentos de corte e acasalamento são também extraordinariamente diversificados, incluindo comportamento em “leks” que ocorre quando um macho estabelece um território para o qual fêmeas são atraídas e do qual ele rechaça agressivamente intrusos e especialmente outros machos. Isso não é registrado para outras drosofilídeas exceto para as havaianas. Diferentes espécies utilizam folhas, ramos, flores e frutos fermentados, fungos e fluxos de secreção de várias plantas como locais para oviposição e suprimento alimentar para as larvas. Espécies de scaptomizideas do gênero Titanochaeta utilizam-se de sacos ovígeros de aranhas- uma dieta incomum para uma drosofilídea. Por que tal radiação adaptativa pródiga, mais pitorescamente descrita como uma “explosão evolutiva”, ocorreu no Havaí? A superabundância de drosofilídeas que lá ocorreu contrasta com a intrigante escassez e até mesmo ausência de outras famílias de dípteros e outras ordens de insetos. A inferência mais provável é a de que os ancestrais das drosofilídeas chegaram ao arquipélago antes da maioria dos demais grupos de insetos. Isto não porque tenham meios mais eficientes de dispersão. Tanto quanto se sabe em nenhum outro arquipélago houve uma “explosão evolutiva” como a que ocorreu no Havaí. Todavia, uma vez tendo chegado lá encontraram uma grande diversidade de oportunidades ecológicas ainda não exploradas por outros insetos. Elas responderam adaptativamente de modo muito rápido. Isso não significa que duas espécies imigrantes tenham simultaneamente se dividido em 600 ou 700 espécies endêmicas. Carlson, Hardy, Spieth and Jones mostraram que a radiação envolveu muitas migrações de ilha para ilha. De fato muitas espécies são endêmicas em apenas uma ou parte de uma única ilha. Um ancestral da espécie A colonizou outra ilha dando origem a uma espécie B que por sua vez recolonizou algumas vezes a ilha da espécie A. e deu origem a uma espécie C. As ilhas mais geologicamente mais recentes provavelmente têm um número relativamente maior de espécies recentes. No entanto seria equivocado concluir que cada nicho ecológico desocupado seria necessariamente e prontamente ocupado por uma nova espécie que possuísse a forma de adaptabilidade adequada. A evidência conclusiva é a de que, ao contrário, um nicho inexplorado pode não evocar uma resposta adaptativa por um longo tempo. Um exemplo extremo é o do homem. Não há uma razão óbvia de porque o homem ou outra espécie capaz de se comunicar simbolicamente e se adaptar por meio cultural e tecnológico não possa ter sido contemporânea dos dinossauros. O nicho ecológico do homem permaneceu desocupado até o Plioceno remoto ou recente. A terra tornou-se habitada muito tardiamente em comparação à água. A mariposa-cigana quando introduzida na America se deu melhor do que na Europa seu lugar de origem. Biólogo algum duvidaria que muitas novas formas de vida poderiam evoluir e encontrar locais para viver. Mas apenas um biólogo imprudente ousaria prever quais seriam essas formas e onde viveriam. Estranho que tais previsões têm sido feitas com invejável auto-segurança por “exobiólogos” quando tratam da evolução hipotética, da vida hipotética, em habitats extraterrestres hipotéticos.Eles são, para dizer de modo elegante, inconvincentes. Segundo Slobodkin não há uma teoria de evolução previsiva ou retroprevisiva. Sem evidências paleontológicas não é possível reconstruir a ancestralidade de organismos viventes. Esforços heróicos foram feitos por zoólogos e botânicos no século 19 e início do 20 por meio de inferências a partir de anatomia e embriologia comparativas. Os resultados foram, no entanto, insatisfatórios. É suficiente lembrar os organismos ancestrais hipotéticos de Haeckel que adornaram muitas páginas de seu livro, mas que em realidade nunca existiram.
Devido o progresso da paleoantropologia é possível agora vislumbrar a ancestralidade da humanidade. A seqüência Ramapithecus-Australopitecus-Homo erectus-Homo sapiens provavelmente proporciona uma idéia válida de alguns dos estágios da evolução humana. Entretanto há a questão: Australopitecus evoluiu para H. erectus e esse para H.sapiens? A resposta deve ser negativa. Dado um estágio, não é possível prever qual deva ser o próximo. Há pelo menos duas espécies de Australopitecus contemporâneas entre si. Mas apenas uma delas foi a nossa ancestral. A evolução da outra resultou em extinção. A despeito de nossa incapacidade de prever não é crível que o homem tenha surgido por meio de uma jogada afortunada de algum dado evolutivo ou celestial. Nem surgimos acidentalmente ou fomos predestinados a surgir. Em evolução, acaso e destino não são alternativas. Essa é uma situação em que na teoria científica podemos invocar algum tipo de dialética Hegeliana ou Marxista. Necessitamos de uma síntese da “tese” do acaso e da “antítese” da predestinação. Não tenho competência filosófica para tal tarefa. Peço ajuda a meus colegas filósofos.
Criatividade da evolução
Considerando-se que não é possível prever evolução, a teoria às vezes tem sido acusada de ser apenas quase-científica. Merecendo ou não o rótulo honorífico “cientifico”, a teoria continuará importante e excitante enquanto existirem pessoas preocupadas em entender a si mesmas e a posição que têm no universo. Certamente a imprevisibilidade da evolução não é inerente à sua natureza. As causas internas e ambientais da evolução constituem um nexo muito complexo para ser resolvido no estado atual do conhecimento. De qualquer maneira a evolução não é nem determinista ou “animista” (no sentido de Monod). Prefiro chamá-la criativa (embora não no sentido de Bergson).
Poderia a palavra “creativo” ser aplicada a um processo que não tem previsão e qualquer capacidade para inventar um meio de atingir um dado objetivo? Talvez evolução seja o único processo que carece de intencionalidade e previsão, mas que ainda é criativo. O significado do verbo “criar” nos dicionários é “concretizar”, “causar a existência de algo”. Criação é também “apresentar uma nova concepção em uma personificação artística”. A evolução não produz apenas novidades, mas tais novidades são personificações de novos modos de vida. Focalizando nossa atenção em indivíduos que se reproduzem sexuadamente com parceiros não afins , notaremos que cada organismo, talvez com raríssimas exceções, é geneticamente singular e não recorrente em outras gerações. A evolução produz novidades por meio de arranjos de padrões gênicos previamente inexistentes. Em longo prazo percebemos que a novidade produzida é muito mais que um mero rearranjo de partes pré-existentes. Ela não pode ser comparada a novos padrões gerados, por exemplo, em um caleidoscópio. Novos padrões biológicos têm certa coerência.
O critério de coerência em biologia é sobrevivência. Uma ampla maioria de padrões gênicos teoricamente possíveis não é perpetuada. Se pudessem ser obtidos, recombinantes de genes humanos com os de Drosophila, por exemplo, quase com inteira certeza não sobreviveriam. Cada nova forma de vida que aparecem por meio da evolução pode, com licença semântica moderada, ser considerada como uma personificação artística de uma nova concepção de vida. Obviamente há diferenças, mas também semelhanças significativas entre o processo evolutivo e a atividade artística. O primeiro não envolve a desempenho que o segundo tem ao efetivar um resultado desejado (excluo a pseudo-arte “aleatória” comum, “poesias” que abrangem uma sucessão de palavras sem significado e “música” produzida por meio de sons concatenados ao acaso ou pinturas feitas por meio de pinceladas ao acaso). Um observador deve ser capaz de perceber uma nova forma de vida personificada em cada espécie biológica.
Arte é uma manifestação de atividade estética. Um observador sensível e culto deverá obter satisfação estética ao descobrir e contemplar a aparentemente infinita variedade de novas estruturas e modos de vida biológicos. Eu não quero dizer especificamente a beleza de pássaros ou borboletas. Qualquer corpo vivo é um trabalho de arte. Sua beleza está em sua teleologia interna (Ayala 1968) que permite ao corpo permanecer vivo como um indivíduo ou espécie. A beleza das criações artísticas é imposta pelos seus criadores, isto é teleologia externa. É óbvio que não estou querendo dizer que a qualidade artística de um corpo vivo seja gerada para a satisfação humana. Para os organismos ela é utilitária e funcional. Apesar disso, podemos notar que a teleologia interna para o homem tem um apelo estético.
A evolução cria novos sistemas vivos que ocupam nichos ecológicos disponíveis e acessíveis. Como comentado acima, nem mesmo nichos ecológicos diminutos e acessíveis serão descartados. Novos nichos ecológicos surgem constantemente. Essa é a causa de o porque a evolução não para. Entretanto, o que torna um nicho ecológico vago acessível? É sem sentido afirmar que uma nova mutação surge para que seu portador ocupe um nicho disponível. A situação é mais complexa. Não há duvida que mutações gerem novos materiais genéticos para a evolução, porém nesse contexto torna-se trivial.
Não sabemos quantos genes não redundantes há em um único gameta humano. Há estimativas de um milhão a uma centena de milhão. Com certeza não seria uma nova mutação maravilhosa em um único que gene que transformaria um chimpanzé em um homem. Essa transformação a partir de um ancestral comum ocorreu por meio e de uma lenta e gradual reconstrução do sistema genético. Não sabemos quantas mudanças gênicas ocorreram, certamente foram muitas, da ordem de milhares e possivelmente milhões. Exceto em espécies raras ou em que há cruzamento entre afins, O “pool” gênico de uma população sexuada contem um número incontável de variantes genéticas surgidas por meio de mutações. A construção de muitos sistemas genéticos diversos pode se iniciar a partir desse material. O problema é saber para quais dessas muitas direções disponíveis o processo de construção seguirá. A presença de cimento, tijolos, madeira e outros materiais possibilitam a construção diferentes tipos de edificações. O material de construção em si não limita o tipo de edificação que será construído.
A criatividade da evolução se manifesta não pela magnitude de mutações, mas por meio da seleção natural e de outros processos genéticos. A acessibilidade de nichos ecológicos não depende da quantidade de mutações, mas sim desses processos. Além disso, e onde a engenharia biológica difere da humana, é fato de que o edifício a ser construído não é decidido antes que a construção se inicie. As “decisões” são realizadas durante o processo de construção. Certamente esse é um método dispendioso de se construir algo. No entanto, a evolução não hesita ou cessa porque aparentemente na história remota a vida tenha ficado sem numerosas linhas de descendência. Atualmente temos algo em torno de 2 milhões de espécies e bilhões de raças e populações locais. O resultado biológico dessas subdivisões reflete uma evolução mais ou menos independente entre si. Wrigth (1932) reconheceu que populações isoladas podem ser consideradas como porções que exploram novas possibilidades de vida. Essas “explorações”, no entanto, não são totalmente ao acaso, nem mesmo no senso estrito de que mutações sejam ao acaso e de eventos casuais. Não devemos nos esquecer que seleção natural é um processo anti-acaso. Ela atua mais do que meramente permanecer na expectativa de que uma combinação “exitosa” genes surja a partir da dupla mutação-recombinação sexual. Ela direciona a combinação “exitosa” pela acumulação gradual de componentes favoráveis. Qualquer seqüência de eventos controlada pela seleção direcional, e mesmo pela normalizadora, é um processo cibernético. Ele transmite para o gene pool da população informações sobre o estado do ambiente. A história evolutiva do mundo vivo não deve ser pensada como se fossem lances vencedores em uma roleta de cassino.
A adaptabilidade a certo ambiente pode ocorrer de várias maneiras. Todos os seres vivos têm as mesmas necessidades básicas: alimento, local para viver, reprodução e proteção contra ameaças ambientais. Não obstante há milhões de espécies que satisfazem a essas mesmas necessidades de milhões de maneiras diferentes. Para oferecer exemplos mais específicos - um animal de sangue quente pode sobreviver a invernos muito frios por ter uma pele espessa, ficar hibernando, migrar para regiões quentes ou usar o fogo para aquecer acomodações apropriadas. Uma planta de deserto pode proteger-se contra dessecação por meio de folhas modificadas em espinhos, folhas cobertas por óleos ou material resinoso, folhas que se desenvolvem durante os períodos quentes e se “fecham” durante períodos secos ou por adequar seu ciclo de vida às estações quentes. Proteção contra predadores pode ser obtida por comportamentos de alerta e evasão, camuflagem, coloração protetora, impalatabilidade ou por defesa ativa que resulte em injúrias ao predador, por ter elevadas taxas reprodutivas que saciem os predadores e possibilitem a parte da prole escapar e finalmente por meio de defesa grupal. A inseminação em animais é realizada por copulação interna, espermatóforos, ou pela liberação de gametas na água onde eles se atraem por meio de sinais químicos ou se encontram ao acaso.
Todas as estratégias adaptativas acima são utilizadas de fato por diferentes formas de vida. Isso nos leva a uma pergunta incômoda do seguinte tipo: se a coloração protetora contribui para a adaptabilidade de uma espécie A, porque uma espécie B também não a tem? A única resposta é a de que a B sobrevive e reproduz bem sem a coloração protetora. Talvez uma pergunta mais adequada seja: Por que A adaptou-se por meio de coloração protetora e B por uma adaptação distinta? Respostas satisfatórias se existirem são raramente disponíveis para tais tipos de questões. Sabemos que uma mesma estratégia adaptativa pode será adotada independentemente em diferentes linhagens filogenéticas. O que pode resultar em convergência evolutiva. Cactáceas na America e euforbiáceas do deserto da África do Sul evoluíram formas resistentes à seca extremamente semelhantes. Cuidado parental e defesa agressiva da prole são encontradas em grupos animais bem diferentes. Em contraste, algumas estratégias apareceram apenas uma vez. Adaptabilidade por meio de comunicação simbólica e cultura transmitidas extra-geneticamente só evoluíram na espécie humana. Atribuir isso a ao acaso não é a melhor maneira. Admitir também que foi predestinação é incompatível com tudo que se sabe sobre as causas da evolução. A analogia com a criatividade artística é pelo menos descritivamente adequada, apesar das óbvias diferenças com o oposto.
Transcendência evolutiva
Meu colega Dubos (1962) escreveu: “o que ainda é completamente misterioso tanto quanto o é, para muitos seres humanos, uma qualidade mística é o fato de que a vida tenha emergido da matéria e que a humanidade tenha tomado um caminho que a está afastando cada vez mais de suas origens toscas”. Místico pode significar tanto “não aparente aos sentidos quanto não óbvio para a inteligência” ou “ consciência de valores pelos menos em parte acima e além da capacidade do simbolismo atual em expressá-lo, em especial a consciência profunda do integral como a unidade das coisas” (Thorpe 1965). A primeira definição é inútil, mas para uma compreensão mais detalhada da biologia a segunda pode ser importante. De qualquer jeito, espera-se que o mistério esteja apenas na forma pela qual foi mal expresso.
A origem da vida e do homem são realmente os pontos-chave da evolução da Terra e provavelmente do universo. Aparente há três modos básicos de se conceber os produtos dessas realizações. O primeiro é o do tradicional vitalismo e criacionismo. A vida surgiu quando uma força vital foi adicionada à matéria inanimada e a implantação da alma foi a origem do homem. O segundo é defendido pelos panpsiquistas ou panvitalistas. Estes são a minoria, mas talvez uma maioria cada vez maior entre os filósofos, tais como Whitehead e Teilhard de Chardin e entre os biólogos Rensch (1971) e Birch (1971). Rensch não vê “ contraste algum entre mente e matéria. Devemos reconhecer que toda “matéria” é caracteristicamente protofísica... Por conseguinte não há em princípio diferenças entre a realidade fenomenológica e ser, mas apenas entre dois sistemas de relações: aqueles pelos quais entram um jorro de consciência e aqueles que permanecem extramental”. Isso simplifica demasiadamente os problemas – vida e mente realmente nunca se iniciaram. Sempre estiveram presentes em toda a matéria em estado incipiente. Mas se isso aconteceu evolução não passa de uma história sem graça. Ela envolve apenas desenvolvimento de algo incipiente e não a produção de novidades.
O terceiro modo reconhece as origens da vida e do homem como as duas maiores transcedências. Transcedência significa ultrapassar os limites comuns (não confundir com transcendentalismo). Não há dúvidas de que a vida transcende os limites comuns da matéria inanimada, e que as capacidades mentais humanas transcendem as de quaisquer outros animais. Nenhuma energia adicional, chamada força vital, é adicionada para dirigir o fluxo dos processos físico-quimicos que ocorrem nos sistemas vivos. Embora sejam regularmente sintetizados estritamente de acordo com leis físico-quimicas uma enorme quantidade de compostos químicos que não ocorrem extracorporeamente. A química orgânica, bioquímica e fisiologia química se desenvolveram por conseqüência desses fatos. Substância alguma chamada alma deve ser considerada como presente no cérebro humano, mesmo se considerarmos que o homem desempenha atividades que nenhum animal desempenha. A psicologia humana abrange assuntos não cobertos pela zoopsicologia, a sociologia lida com processos que têm apenas remota semelhança com a zoosociologia e as humanidades, como o próprio nome significa, lida exclusivamente com a conduta e realizações humanas.
A emergência do homem é temporalmente muito mais próxima a nós que o início da vida. Apesar disso, esse evento mais recente de grande transcendência evolutiva apresenta problemas mais desafiadores que os do início da vida. A partir de agora concentremos nossa atenção sobre o homem. As suas estruturas corporais sofreram modificações significativas durante a ascensão do homem a partir de seus ancestrais parecidos com o chimpanzé. Simpson(1969) listou 12 caracteres estruturais e 10 psicológicos que distinguem a espécie humana. Os estruturais são principalmente os relativos à postura em marcha ereta. De acordo com Simpson, “a característica crucial foi a aquisição da postura ereta e locomoção estritamente bipedal. A maioria das demais peculiaridades anatômicas humanas foram conseqüência daquelas ou co-adaptadas a elas”. Todavia, as peculiaridades estruturais humanas só são suficientes para colocar o homem em uma família zoológica monotípica, contendo apenas uma espécie vivente. As capacidades mentais são, todavia, muito mais distintivas. Se a classificação zoológica fosse baseada em características psicológicas ao invés de estruturais, o homem poderia ter sido considerado um phylum ou até mesmo um reino distinto.
O homem tem autoconsciência e consciência da morte. Bidney (1953) descreve a autoconsciência como: “O homem é um animal autoreflexivo de tal forma que é capaz de objetivar a si próprio, de se colocar aparte de si mesmo e de tecer considerações sobre o tipo de ser que ele é, o que deseja e o que gostaria de ser. Outros animais podem ser conscientes do que lhes afeta e de objetos percebidos; somente o homem é capaz de refletir, de autoconsciência e de pensar em si como um objeto”. Ele também é único na capacidade de saber que vai morrer. Todos os animais morrem, mas apenas o homem sabe que a morte é inevitável.
Há um contraste curioso entre autoconsciência e consciência da morte. A primeira é de conhecimento pessoal e a segunda de conhecimento público. Sherrington(1955) disse: “ uma distinção radical surgiu entre vida e mente. A primeira é uma questão de física e química; a última vai além da física e química”. Vai além porque é vivida introspectivamente mais do que objetivamente observada. Para mim, minha mente é a mais imediata e indubitável de todas as certezas. Ela é a base do “cogito ergo sum” de Descartes. Infiro que outras pessoas também têm mentes, porque a maior parte do tempo suas ações se assemelham às minhas, as quais são produtos de minha autoconsciência. Para outros animais essa evidência é totalmente inalcançável; embora alguns possam ter traços de autoconsciência e outros não.
Em contraste à autoconsciência, a consciência sobre a morte leva a tipos de comportamento que são objetivos, tais quais os cerimoniais de enterro e outras formas de cuidado ou preocupação com a morte. Todas as sociedades humanas sejam primitivas ou avançadas manifestam tais preocupações. Animal algum o faz. Formigas removem machos mortos em seus ninhos junto a outros “lixos” e térmitas os consomem como alimento. Para o homem os ritos e cerimônias fúnebres diferem bastante entre sociedades distintas. Elas vão desde a veneração pelo medo até o sepultamento, cremação ou exposição do cadáver a comedores de carniça. Além disso, ritos funerais são conhecidos desde os Neandertral ou mesmo do Homo erectus. Enterros paleolíticos e neolíticos foram descobertos por arqueólogos. A consciência da morte e aparentemente quase todas as crenças religiosas associadas a ela ou dela derivadas, acompanham o homem desde o alvorecer da humanidade.
Embora sejam profundamente diferentes em suas manifestações, a autoconsciência e a consciência da morte são causalmente relacionadas. Quando no dizer de Bidney o homem se tornou um “animal autoreflexivo” ele provou o fruto proibido da Arvore do Conhecimento de Deus e do Diabo. Ele descobriu que a morte é o seu destino pessoal e inevitável. Apenas um ser que conheça seu destino pode ter uma “Preocupação Remota” e manifestar preocupação pela morte de seus coespecíficos. Ele distingue o sagrado do profano. Qual o sentido que um biólogo pode ter sobre essas faculdades humanas? A seleção natural implantou-lhe a autoconsciência e a consciência da morte? Sugiro que a evolução adaptativa seja diretamente responsável pela autoconsciência. Porém, como a consciência da morte é um produto inevitável da autoconsciência, ambos podem ser produtos dessa forma singular de adaptação evolutiva (Dobzhansky 1967). Autoconsciência, como foi mencionado acima, é refratária a estudos objetivos, muito embora não haja dúvidas que desempenha um papel importante nas formas de organização social humanas, as quais são basicamente distintas das de outros animais. O homem sabe que é responsável pelo seu comportamento pessoal e ações e considera outros homens responsáveis pelos seus. O homem distingue o bem do mal. Ele é um ser ético. Reflete sobre seu passado e faz planos para seu futuro e de seu ambiente, incluindo outras pessoas. Ele raciocina e pode modificar seu comportamento de acordo com sua experiência e suas decisões tomadas livremente. Seja ou não, em um sentido metafísico, seu desejo livre o homem tem pelo menos uma ilusão mental de que é livre.
O fato de que as formas de organização social humanas sejam adaptativas do ponto de vista biológico é inquestionável. Sociedades de insetos (formigas, cupins, vespas e abelhas) também têm sucesso. Porém são baseadas em um princípio bem distinto da plasticidade comportamental humana. Esse principio é o comportamento instintivo ao invés das dúvidas e incertezas da autoconsciência. Este é mais um exemplo de adaptabilidade alcançada por meio de maneiras distintas. No entanto, a espécie humana alcançou um sucesso evolutivo bem além daquele alcançado pelas demais espécies. Surgindo como uma espécie rara em algum lugar da África, espalhou-se pelo mundo todo. Sua população aumentou dezena de milhares de vezes no último milhão de anos. Ela cresce rapidamente dominando o planeta Terra. Em qualquer nível, essa dominância não tem paralelo em outra espécie, exceto e pode ser estranho dizer, alguns vírus e bactérias. A humanidade transcendeu sua animalidade principalmente na esfera espiritual- conhecimento, estética e inteligência.
Tudo dito acima não significa que a humanidade esteja inteiramente protegida contra desastres e mesmo extinção. É desnecessário lembrar os malefícios advindos de um crescimento populacional descontrolado e da conseqüente espoliação do ambiente. Todavia, se a humanidade tornar-se extinta será o primeiro caso de uma espécie cometendo suicídio. Todas as extinções ocorridas na história evolutiva foram de espécies incapazes de se auto-ajudarem, em primeiro lugar porque não tiveram consciência das ameaças potenciais e deste modo não puderam evitá-las. O homem é capaz de prever os perigos pelo menos em seu futuro imediato. Por isso pode e espero que tome medidas para evitá-los.
Sumário conclusivo
Exceto em nível humano, a evolução é um processo mecânico que age cegamente. Ela não planeja para o futuro, concebe propósitos ou batalha para realizá-los. Como é possível um processo que transcende a si próprio ser despropositado? Como é possível um agente impessoal dar origem a pessoas que têm autoconsciência e consciência sobre a morte. De onde vem a semelhança entre a evolução biológica e a criatividade humana?
Várias soluções foram propostas. Determinismo rígido e puro acaso são opostos polares. O famoso dictum de Laplace que para um intelecto “suficiente poderoso” nada é incerto; tanto o futuro como o passado são igualmente “visíveis a seus olhos”. Se fosse, toda a evolução teria sido desde o início da vida predestinada em seus ínfimos detalhes. A evolução é meramente um descortinar lento e tedioso do que foi preordenado a aparecer em seqüências destinadas a se suceder em uma ordem rígida por todos os tempos. O fato universal da adaptabilidade dos seres vivos a seus ambientes torna-se um enigma insolúvel. A um observador humano a futilidade escalonada da evolução predeterminada não sugere uma divina providência, mas está mais próximo do que Dostoievsky chamou de um “teatro de variedades do diabo”. Acaso para alguns significa acausalidade . Para Nagel (1961) é algo que acontece na “intersecção de duas séries causais independentes”. Seja o que for, a adaptabilidade orgânica é inexplicável. Uma espetacular seqüência longa de acasos milagrosos pode ser apenas feita por um milagreiro. Os opostos polares evolução por acaso e por predestinação estão em última análise em convergência mútua.
Mutação, recombinação sexual e seleção natural estão ligadas em um sistema que torna a evolução um processo criativo. É preciso cautela com modelos que vêem seleção natural como uma peneira que meramente separa mutações casuais e recombinações em “sucesso” e “sem sucesso”. Mais do que isso a seleção natural é um processo cibernético que canaliza o fluxo de informações vindo do ambiente para o pool gênico. Por outro lado, supor que toda a evolução é ordenada pelo ambiente também é uma super-simplificação. Há três modos de adaptação ao ambiente em uma dada região geográfica. Em uma perspectiva histórica o ambiente e os organismos que o habitam podem ser vistos como um ecossistema em evolução. Diversas invenções biológicas possibilitam que diferentes organismos com modos de vida distintos explorem o ambiente de maneiras diferentes. É nesse aspecto que evolução se assemelha à criação artística. Sua verdadeira obra prima é o homem.
Não havia evolução biológica antes que a vida aparecesse pelo menos em um planeta no universo. A evolução do homem começou apenas após o surgimento de um ser capaz de elaborar rudimentos de pensamento simbólico e de autoconsciência. Não vejo vantagem qualquer em supor que alguns rudimentos tênues de vida, sensação, mente e autoconsciência fazem parte de toda matéria. A vida surgiu da matéria inanimada e a mente de vida sem autoconsciência. A evolução tem-se mostrado capaz de produzir novidades radicais. Dizer que a potencialidade de vida e mente estava presente antes de seu aparecimento é trivial – isso apenas significa que de fato surgiram. Toda evolução – inorgânica, orgânica e humana- originou-se a partir de leis construídas na “fábrica” do universo. Essa afirmação não implica em uma crença disfarçada em predestinação. É importante entender que as potencialidades da evolução são muito mais numerosas que suas realizações. Assim, em nível biológico, a recombinação gênica é potencialmente capaz de engendrar padrões gênicos amplamente mais numerosos que todas as partículas subatômicas em todo o universo. Quais são as potencialidades da evolução que não foram realizadas? Provavelmente seria inútil especular a respeito.