03.10.10
Uma tradução de Dobhzanski - Parte 2
Sérvio Pontes Ribeiro
Rogério Parentoni mais uma vez nos oferta uma pérola. Desta vez a tradução do clássico:
Dobhzansky, T. 1974. Chance and Creativity in Evolution. Pp. 307-338, IN: Ayala, F.J & Dobhzansky, T. Studies in the Philosophy of Biology. The Macmillan Press, London.
O mesmo segue abaixo publicado em três dias, em 3 partes. Boa leitura.
PARTE 2 - Recombinação gênica
Recombinação gênica também é uma fonte variabilidade que vem em segundo lugar atrás da mutação. Seu significado freqüentemente é subestimado, principalmente por pesquisadores que estudam organismos que se reproduzem assexuadamente e procariotos haplóides. Indivíduos destes tipos de organismos são provenientes de um mesmo clone e têm o mesmo genótipo. Uma mutação que produz normalmente alteração em um único gene dá origem a um novo clone distinto do ancestral e por isso a evolução parece ser apenas uma disputa entre tais clones. Adicionalmente recombinação gênica ocorre de tempos e tempos, mesmo em procariotos, devido aos processos de transformação, transdução, parasexualidade e sexualidade completa.
Em diplóides sexuais um grande número de genótipos surge em cada geração por meio da segregação mendeliana e recombinação. Um indivíduo heterozigoto para n genes tem a potencialidade de produzir 2n diferentes tipos de gametas; parentais heterozigotos para n genes produzem potencialmente 3 n genótipos na progênie. E parentais heterozigotos para n genes diferentes produzem 4 n genótipos. Devido à ocorrência de ligações, nem todos esses genótipos tornam-se realizados. Contudo, com n em centenas e milhares, dois indivíduos em populações de espécies sexualmente reprodutivas têm uma baixa probabilidade de serem idênticos. Para o homem, provavelmente um mesmo genótipo não estará representado em mais de um indivíduo, exceto em gêmeos idênticos e outros nascimentos múltiplos. O mesmo é esperado para os demais organismos que se reproduzem sexuadamente.
A singularidade genética de indivíduos poderia ser interessante, porém no contexto evolutivo um fato não destacadamente importante, se os genes atuassem autonomamente durante o desenvolvimento individual. O desenvolvimento, todavia, não é o resultado da adição de “caracteres unitários” gerados independentemente por diferentes genes. Embora estivesse em voga entre os geneticistas mais antigos, a idéia de “caractere unitário” tem agora poucos seguidores explícitos, com exceção na forma do postulado “ um gene-uma cadeia polipeptídica na proteína”. Redes de relações mais ou menos complexas intervêm entre os genes nas células sexuais e as características dos indivíduos adultos. Efeitos gênicos interagem, mas no atual estado de nosso conhecimento os resultados destas interações são dificilmente previsíveis. Um gene A que é benéfico a um organismo quando está combinado a um gene B1, pode ser inútil ou prejudicial em combinações com os variantes B2 ou B3. O estado de ser adaptado e outras propriedades dos portadores de um dado genótipo são os produtos emergentes das chamadas interações epistáticas dos genes em sua constelação específica. Não há significado esotérico algum no termo “emergência”. A imprevisibilidade e indeterminação não são manifestações de algum princípio “casual” inerente à matéria viva, eles são uma medida de nossa ignorância. Mas isto não torna os fenômenos subjacentes a eles desprovidos de um significado importante.
O desempenho mais óbvio da recombinação é o de facilitar a organização do arranjo conjunto de mutações favoráveis, que surgiram independentemente em outros indivíduos, em indivíduos de outras gerações. Isto não é pouco significativo para mutações que são benéficas em si mesmas; a recombinação tem maior importância ainda quando mutações neutras e deletérias tornam-se em si mesmas vantajosas por meio de efeito de interações epistáticas. Populações de organismos diplóides com fecundação cruzada são portadoras de numerosas variantes genéticas; novos padrões de arranjos gênicos surgem freqüentemente em indivíduos diferentes: o número total de tais padrões quase equivale ao número de indivíduos que são produzidos. Ao invés de clones assexuados que competem entre si, o que temos é um imenso repertório de genótipos individuais. Ao invés de trabalhar com um vasto número de variantes genéticas, a seleção natural trabalha com um número ilimitado de combinações entre elas.
O processo sexual tem tanta eficiência para gerar novas combinações de genes quanto em rompê-las. Crianças não herdam os genótipos de seus pais, mas sim várias constelações de genes parentais, meio a meio. Quais constelações que herdarão é questão de acaso. Nem as combinações melhores e mais favoráveis, nem as piores e adaptativamente menos favoráveis, têm garantia de surgirem. Simplesmente porque mesmo as espécies mais fecundas produzem número de proles que são apenas uma diminuta fração do potencial de possíveis recombinações. Caso o seja, qual o benefício que a formação de um padrão gênico superlativo em um indivíduo traria para a espécie? A resposta é a de que a incidência dos componentes de tal recombinação torna-se aumentada no pool gênico da população e, deste modo, aumenta a probabilidade de surgir padrões gênicos similares, mas realmente nunca idênticos.
A formação de cada genótipo individual em organismos com reprodução sexuada é um evento único. Considerando-se que em cada geração uma população mendeliana é um conjunto de indivíduos singulares, tal população também o é. Evolução é uma sucessão de configurações populacionais singulares. Quando o dado evolutivo é lançado, quem o lança é a seleção natural.
Seleção natural e ambiente
A limitação de espaço impede uma revisão detalhada sobre história da teoria de seleção natural e de sua situação atual. Apenas os aspectos da teoria mais relevantes com relação ao tema desenvolvido serão abordados. Antes de tudo, deve ser ressaltado que seleção natural estabelece restrição sobre o acaso e faz com que a evolução seja direcional. Normalmente e não invariavelmente, a seleção aumenta o “estado de ser adaptado” de uma população a seu ambiente. Ela é responsável pela teleologia interna tão notavelmente aparente nos seres vivos. A confusão estabelecida pela mutação e recombinação é ajeitada e canalizada em direção ao “estado de ser adaptado”. Esse fato não torna a evolução ortogenética, porque a seleção natural depende do ambiente e o ambiente nem sempre muda em uma direção constante. Apenas se o ambiente se modificasse direcionalmente ou pelo menos permanecesse razoavelmente constante durante períodos de tempo prolongados, a seleção poderia ser ortoseleção. Caso ocorra uma reversão nas condições ambientais (por exemplo, o clima tornar-se cada vez mais frio e novamente tornar-se quente) a direção da seleção pode também ser revertida.
A seleção natural estabelece uma ligação entre o pool gênico de uma espécie e o ambiente. Ela pode ser comparada a um servomecanismo em um sistema cibernético constituído pela espécie e seu ambiente. De uma forma algo metafórica, pode ser dito que a informação acerca dos estados do ambiente é passada e armazenada no pool gênico como um todo e em genes específicos. O ambiente não “ordena” as mudanças que ocorrem nos genes de seus portadores. Nossa concepção atual é a de que a evolução não é puramente ectogênese imposta pelo ambiente e nem as mudanças evolutivas são determinadas a partir do “interior” do organismo. As relações entre evolução e ambiente são mais sutis. Talvez elas possam ser mais bem descritas por meio da frase de Toynbee “desafio e resposta” que foi utilizada por este historiador para explicar a gênese da civilização humana e sua história subseqüente.
A complexidade da situação, todavia, é tão avassaladora que não podemos prever em casos concretos se ou não um desafio estabelecido pelo ambiente resultará em uma resposta evolutiva adaptativa. Uma resposta específica não ocorrerá caso não haja disponibilidade de material genético adequado. Ninguém deve, por exemplo, esperar que a espécie humana evolua uma raça com um par de asas e nem que alguém possa viver na lua sem trajes espaciais. A resposta evolutiva pode ser tão lenta que não impedirá a extinção de uma espécie particular. Esta é provavelmente a causa mais comum de extinção de espécies na história da Terra. Finalmente, uma resposta adaptativa coerente pode ser dada de várias maneiras distintas. Considere por exemplo a situação de animais submetidos à escassez de alimento durante o inverno em países de clima frio. O problema adaptativo poderá ser solucionado por meio da armazenagem de alimento ou de hibernação. Reconsideraremos abaixo esta variedade de respostas adaptativas. O que deve ser ressaltado é que não há ainda uma teoria que torne a evolução previsível. Aqueles que consideram previsibilidade como uma característica essencial de uma teoria científica podem justamente considerar que a teoria da evolução seja não científica.
Todavia há um mal-entendido sobre seleção natural que pode ser claramente reconhecido. Muitos críticos da teoria de evolução moderna estão insatisfeitos com a teoria por acreditar que seleção natural seja um fator aleatório na evolução. O oposto é verdadeiro – a seleção natural é um fator não aleatório da evolução. O acaso predomina nos processos de mutação e recombinação e não no sentido limitado com foi exposto acima. Ao contrário, a seleção como regra é dirigida em direção da manutenção da aptidão darwiniana. Aptidão darwiniana é aptidão reprodutiva. Ela é quantificável como a taxa de transmissão para a próxima geração dos componentes de um dado genótipo em relação aos demais genótipos presentes na mesma população. Ela é uma função da viabilidade, fecundidade, velocidade de desenvolvimento, maturidade sexual precoce ou tardia, proficiência sexual e outros fatores.
Como regra geral a aptidão darwiniana é positivamente correlacionada à adaptabilidade dos portadores de um genótipo no mesmo ambiente. Entretanto, deve–se ressaltar que a aptidão darwiniana é uma medida relativa (isto é relativa aos demais genótipos), mas adaptabilidade em princípio pode ser medida em termos absolutos, muito embora ainda não haja técnicas satisfatórias para fazê-lo. Algumas vezes, no entanto, aptidão darwiniana e adaptabilidade divergem entre si. Em Drosophila, camundongo e provavelmente muitos outros organismos há variantes genéticas que subvertem o processo de formação da célula germinativa de tal forma que são transmitidas à prole em maior proporção do que suas alternativas. Portadores de tais variantes têm por definição uma maior aptidão darwiniana que os não portadores e, além disso, tais variantes podem ser deletérias ou até mesmo letais nos homozigotos. Tais fatos não são surpreendentes nos processos de seleção natural. Por outro lado é surpreendente que sejam raros, pois seleção natural é mais um processo “cego e automático” do que “intencional”.
Outra fonte de mal entendido de que seleção natural seja ao acaso é a de que ela opera por meio de probabilidades mais do que “tudo ou nada”. Situações nas quais uma variante genética é totalmente letal em um ambiente, enquanto sua alternativa é letal em outro, são raras como um todo. Um exemplo disso são os mutantes resistentes à estreptomicina em algumas bactérias, as quais também são dependentes da estreptomicina. Quando expostas a uma dosagem apropriada de estreptomicina todos indivíduos normais (sensíveis à estreptomicina) são eliminados, apenas os mutantes sobrevivem. Mutantes resistentes e dependentes morrem em um meio desprovido de estreptomicina, sobrevivendo apenas os mutantes que reverteram para a condição estreptomicina-independentes.
Em maior freqüência, seleção trabalha com variantes genéticas algumas das quais têm alta probabilidade de sobreviver em certos ambientes que outras variantes, que produzem um grande número de descendentes ou que tem maturidade sexual precoce, ou mostram um maior direcionamento sexual ou cuidam melhor da prole. A aptidão darwiniana é um resultado conjunto de todos estes fatores. Pode acontecer que a seleção natural promova a fixação de variantes genéticas com algumas características desvantajosas, mas que são sobrecompensadas por outras características vantajosas. Isto tem sido mal interpretado como uma mudança ortogenética vinda a partir de “dentro” do organismo e que se mantém como em desafio à seleção natural. Um exemplo impressionante, mas especulativo, é o do alce irlandês: um animal extinto que tinha galhadas enormes e largas que foram aumentando mais e mais em sucessivas gerações até a extinção da espécie. A espécie se extinguiu porque as galhadas eram muito pesadas para locomover e, se foi realmente isso, como a seleção natural “permitiu” que acontecesse? Uma alternativa razoável é a de que indivíduos com galhadas relativamente maiores tiveram maior sucesso reprodutivo por terem melhor desempenho na luta por acasalamentos, assegurado desse modo uma maior proporção de acasalamentos que os rivais com galhadas menores. Esta vantagem pode ter sobrecompensado o incomodo de carregar tal ornamento desajeitado, até que o ambiente tenha se tornado mais hostil e causado a extinção da espécie.
A seleção natural atua como uma peneira?
A seleção natural é um processo impessoal e sem um propósito definido que no entanto conduz como uma regra a teleologia interna dos organismos. É perfeitamente correto ressaltar seu caráter mecânico, automático e mesmo assim essa constatação pode ser ainda mal interpretada. Um dos exageros é o de considerar seleção como uma mera peneira ou meio de triagem de variantes genéticas inalteráveis deletérias ou úteis que foram geradas por mutações. O processo seletivo poderia atuar como uma peneira que retêm os raros mutantes favoráveis e deixa o resto ser descartado por meio de “morte genética”. Esta imagem da seleção natural se ajusta a certas situações, especialmente se considerramos os micro organismos e particularmente aqueles que trabalham com tais organismos. O exemplo da resistência antibiótico em bactérias pode ser considerado como “modelo peneira”. Porém comumente este modelo representa uma supersimplificação.
Ambos a magnitude e o sinal de alteração da aptidão darwiniana causado por um mutante podem mudar dependendo dos ambientes genéticos e externo ao organismo. A “peneira” da seleção deve portanto funcionar como uma aparato extremamente sofisticado: uma variante genética é retida ou passa pela peneira não devido a suas próprias propriedades mas também devido às propriedades de das demais variantes expostas ao mesmo processo de “peneiramento”. Dito de outra forma, a aptidão darwiniana não é uma propriedade intrínseca de uma variante genética surgida por meio de uma mutação, mas sim um produto emergente de suas interações com o ambiente e o restante do sistema genotípico. O “modelo peneira” é assim patentemente equivocado.
Visto por outro ângulo, as propriedades interativas do sistema genético fazem aumentar consideravelmente a variedade de materiais genéticos sobre o quais a seleção atua. É enorme a variedade de mutantes que surgem nos indivíduos de uma espécie, porém, a não ser que um mutante atue como um dominante letal, que é descartado pela seleção na mesma geração onde surgiu, ele deverá ser avaliado por meio da aptidão darwiniana em numerosos padrões gênicos da progênie. Como salientado por Wrigth(1932), as combinações potenciais possíveis de genes são amplamente mais numerosas que as partículas subatômicas do universo estimadas pelos físicos. O número de combinações gênicas que se realizam são quase tão numerosas quanto o são o número total de indivíduos nascidos.
Nessa altura torna-se apropriado salientar que alguns mutantes e combinações gênicas são adaptativamente neutras. Elas nem reduzem ou aumentam a aptidão de seus portadores comparado às demais variantes do pool gênico de certa população. A “peneira” da seleção os ignora totalmente, eles meramente oscilam ou derivam no pool gênico. Há opiniões amplamente divergentes sobre a magnitude de prevalência de variantes neutras. Adeptos da chamada “evolução não darwiniana” são enfáticos ao afirmar que a maioria das mutações em nível molecular é neutra, ao passo que os biólogos os quais eles designam “panselecionistas” consideram a ocorrência de mutações neutras excepcional. Este é um problema não resolvido da teoria da evolução, que não será discutido aqui em detalhes. Duas considerações devem ser postas a fim de esclarecimento. O rótulo “não darwiniano” é inadequado, pois há várias teorias “não darwinianas” (e.g. lamarckeana) precedentes a essa designação. Evolução por percurso aleatório é uma designação mais apropriada. Segundo, a dicotomia neutro versus não neutro é sem sentido: variantes que são neutras hoje podem não ter sido anteriormente, como podem também não ser no futuro. Esta consideração é relevante particularmente se aplicada ao homem, devido às mudanças radicais em seu ambiente durante sua evolução. Deste modo, genes que conferiram resistência a muitas infecções e outras injúrias que nossos antecessores sofreram podem agora ser vestígios evolutivos sem significado adaptativo.
Seleção natural: censora ou engenheira?
O modelo da peneira e outros modelos de seleção natural similares enfatizam sua função destrutiva. Como se fosse um censor, a seleção deletaria o que é adaptativamente inadequado e deixaria passar o restante. Este modelo representa apenas um dos tipos de seleção natural que é o de seleção normalizadora. Nesse tipo a seleção “retira” absolutamente do pool gênico as variantes genéticas deletérias, ou pelo menos reduz suas freqüências a um mínimo irreduzível. A seleção normalizadora já havia sido reconhecida por alguns antecessores de Darwin, todavia não sob esse nome. Versões de seleção balanceadora (heterótica, diversificadora, dependente de freqüência) e da seleção direcional atuam como se fosse engenheiros e não censores. O aspecto mais interessante de suas ações é o que elas constroem, mais do que destroem. O modelo “engenheiro” de seleção pode parecer inaceitável para certas pessoas. Nenhum tipo de seleção pode atuar como se houvesse um planejamento preconcebido. Simplesmente porque ela é incapaz de prever a situação futura tanto do organismo quanto do ambiente. Além disso, ela deve ser ressaltada porque o fato de que seleção não faz algo mais do que apenas permitir que mutantes benéficos raros reproduzam não é percebido por muitos biólogos e filósofos. Assuma que ter pele escura é adaptativo em seres humanos que vivem em países muito expostos á luz solar e que a pele clara é adaptativa em países onde a luminosidade solar é escassa. A diferença entre pele escura e clara é controlada pelo menos por 4 genes, provavelmente mais numerosos, de efeitos aditivos- cada um deles adiciona ou subtrai uma quantidade relativamente pequena do pigmento. A cor de pele é variável e genes que determinam cor da pele são dispersos por provavelmente todas as populações humanas. Como é possível que ocorresse uma mudança evolutiva de pigmentação escura para clara e o reverso? Variantes gênicas que aumentam a pigmentação se acumulariam em habitantes de países ensolarados e aqueles que a diminuem em países onde a luminosidade é escassa. Essa ação composta da seleção obviamente envolverá redução em freqüência ou até mesmo a eliminação de certas variantes gênicas. Todavia, a mesma magnitude de pigmentação pode ser obtida por meio da seleção de genes diferentes em populações distintas; o que é preservado é mais significativo do que é eliminado. Raças que tenham magnitude igual de pigmentação podem ter diferentes genes para pigmento. Isto é apenas conjectura se considerarmos nossa espécie, porém bem estabelecida para outros animais. Talvez o caso mais elegante seja o da mariposa Triphaena comes descoberto por E.B Ford: duas raças desse lepidóptero embora sejam geneticamente bem diferentes são indistinguíveis na aparência. A similaridade entre elas deve ter sido obviamente obtida por diferentes meios genéticos. O aspecto “engenheiro” da seleção natural é talvez mais eloqüentemente manifesto por meio da convergência evolutiva. Exemplos deste fenômeno fascinaram biólogos desde os tempos pré-evolutivos, quando sua origem não podia ainda ser entendida. Por exemplo, considere baleias e golfinhos que são mamíferos e os peixes. A forma do corpo e o modo de locomoção são mais semelhantes entre eles do que a mamíferos terrestres. Ancestrais muito remotos de todos os mamíferos foram peixes, embora não idênticos aos peixes atuais. Ancestrais muito menos remotos das baleias e golfinhos, todavia, foram mamíferos terrestres e não animais parecidos a peixes e se tornaram semelhantes a peixes secundariamente quando de seu retorno à vida aquática. Corpo e locomoção semelhantes a peixes são adaptativamente superiores a quaisquer outras estruturas de mamíferos que permitem locomover na água. A seleção natural promoveu o desenvolvimento de atributos semelhantes a peixes nos ancestrais de baleias e golfinhos. Entretanto seria ingênuo imaginar que corpo semelhante a peixe apareceu em um belo dia como um mutante benfazejo. Não sabemos quantos genes tiveram que mudar uma, várias ou muitas vezes durante a descendência de baleias e golfinhos a partir de seus ancestrais terrestres. Certamente foram milhares ou milhões de mudanças gênicas. A transição ocorreu de forma gradual. Um mamífero terrestre, como por exemplo, a preguiça, pode nadar ocasionalmente; castores e lontras passam muito do seu tempo na água, mas eles não se parecem a peixes; focas e peixe-boi são muito mais parecidos, mas baleias e golfinhos têm que ser observados detalhadamente para serem reconhecidos como mamíferos.
Não estou sugerindo que os ancestrais de baleias tenham sido lontras e focas. O ponto importante é o de que suas características semelhantes a peixes foram gradualmente construídas pela seleção a partir de variantes genéticas e de suas recombinações, algumas das quais surgindo por mutações, talvez também na ancestralidade humana, mas não foram usadas pela seleção como materiais para a construção de padrões gênicos adaptativos. Isso não quer dizer que focas e lontras se tornarão necessariamente golfinhos ou semelhantes a baleias com o passar de milhões de anos de transcurso de sua evolução. Também não deve ser pensado que baleias e golfinhos sejam 100% adaptados a viver na água ao passo que lontras e e focas sejam 50 ou 90% (afirmação ingênua como a anterior foi feita por um pesquisador em uma discussão sobre evolução de plantas).
Podemos comparar razoavelmente entre si a adaptabilidade de raças de uma espécie ou espécies de um gênero tendo em vista que elas explorariam nichos adaptativos similares ou sobrepostos ou competiriam pelos mesmos tipos de recursos. Dessa forma, a adaptabilidade de Drosophila melanogaster como decompositora em habitats criados pelo homem é normalmente muito maior que a de D. pseudoobscura ao passo que em habitats naturais, no oeste dos EUA, o inverso é verdadeiro. Entretanto, é sem significado querer supor que as Drosophila sejam mais ou menos adaptadas que um gafanhoto ou camundongo; seus modos de vida são tão distintos que só por acaso entrariam em contato entre si. Até mesmo espécies raras e relictuais podem ser muito bem adaptadas a seus nichos ecológicos. Sua raridade pode ser resultado de que seus nichos ecológicos sejam muito restritivos, como ocorre às Drosophila cujas larvas só se desenvolvem em caranguejos terrestres, como já mencionado.
Castores e lontras gastam muito mais tempo em atividades terrestres que em atividades aquáticas; focas saem da água com freqüência, ao passo que golfinhos e baleias nunca o fazem. Afirmar que castores e lontras possam não ter “avançado” muito evolutivamente como os golfinhos e baleias poderia sugerir sutilmente crença em ortogênese, mas isso seria supérfluo. Mesmo considerando-se a possibilidade de algum tipo de ortoseleção tenha ocorrido na descendência de golfinhos e baleias a partir de seus ancestrais terrestres. Estes se tornaram cada vez mais parecidos a peixes e especializados a viver na água. Seria também sem sentido considerar se eles foram para a água antes de começar a mudar suas formas corporais e extremidades em direção a peixes ou o contrário. Obviamente deve ter havido uma retroalimentação entre a estrutura corporal e o modo de vida que adotaram.
A afirmação que o processo necessitava um suprimento de mutações “casuais” é verdadeira, mas trivial. O que é muito mais interessante é que essas variantes genéticas não foram simplesmente retidas em uma “peneira”, mas foram gradualmente integrando e se organizando em padrões adaptativamente coerentes durante milhões de anos e gerações de respostas a desafios ambientais. Nesta perspectiva temporal, a ocorrência do processo não se deve ser atribuída ao jogo de azar, mas muito mais do que seria admitir que o Empire State Building tivesse sido originário da aglomeração ao acaso de mármore ou concreto. O que é fundamental nestes casos é que o processo de construção logrou sucesso. O significado, a teleologia interna, é imposto pela seleção natural, um engenheiro cego e mudo, ao processo evolutivo. O “significado” em termos de criaturas vivas, não é apenas simples, mas básico: ele significa vida em vez de morte.
Oportunismo da evolução
É auto-evidente o fato de que qualquer espécie vivente, pelo menos qualquer espécie que não esteja à beira da extinção, tenha um conjunto de soluções para certos problemas ecológicos ou biológicos básicos. Ela deve se alimentar para repor a energia despendida; ter um local para viver e um modo de reprodução e, assim, perpetuar seus genes em sucessivas gerações. Adaptabilidade é o nome que se dá ao fato de se ter um conjunto de soluções válidas. Todas as espécies viventes são adaptadas a seus ambientes. Se não o fossem não estariam vivendo. Seria o conceito de adaptabilidade meramente tautológico? Nem tanto - a adaptabilidade pode ser maior ou menor, mais ampla ou mais especializada, mas flexível ou rígida.
Todas ou quase todas as espécies viventes alcançaram pelo menos níveis toleráveis de adaptabilidade (menos as que estão à beira da extinção). Por que a evolução não para? Ao contrário a evolução continua promovendo novas soluções para os mesmos problemas biológicos primordiais. Todavia, não há uma lei da natureza decretando que tudo deva evoluir todo o tempo. Os chamados “fósseis vivos” são espécies viventes que também foram registradas como fósseis em estratos geológicos de idades mais ou menos remotas. Deste modo, ossos de gambás do Cretáceo são semelhantes aos de espécies atuais; acreditava-se que celecantos teriam se extinguido no Cretáceo até a descoberta de uma Latimeria no oceano índico “externo” à África do Sul; caranguejos-ferradura (Limulus) não diferem muito dos que viveram cerca de 200 milhões de anos; o Brachiopoda Lingula mudou muito pouco de 450 milhões anos para cá.
Não sabemos as causas pelas quais os fósseis vivos pararam de evoluir. Tem sido frequentemente pressuposto que a fonte de mudanças evolutivas tenha “secado” por causa da falta de ocorrência de mutações. Mas isto quase com certeza é errado. Selander determinou a variabilidade genética do caranguejo-ferradura a qual não é muito mais baixa que em Drosophila que evoluem rapidamente. Taxas evolutivas não são primariamente dependentes de taxas de mutação. Outros pesquisadores imaginaram que evolução poderia parar quando 100% de adaptabilidade fosse atingida. Isto faz muito menos sentido. Claro que não é óbvio que gambás, ou caranguejos-ferradura tenham adaptabilidade mais perfeita que camundongos, gatos ou lagostas. Uma suposição melhor é a de que fósseis vivos ocupam nichos ecológicos que foram se tornando restritos, mas permaneceram com suas propriedades não muito alteradas por um tempo extenso.
Evolução ocorre quando há desafios e oportunidades para evoluir. Os desafios mais primários são os que procedem a partir do ambiente. Quando o clima se torna mais quente ou frio a seleção poderá favorecer ajustes fisiológicos que tornam o clima alterado tolerável. Uma mudança climática pode, no entanto, causar outras mudanças que apenas a temperatura. Pode mudar o ecossistema inteiro. Adaptabilidade a fatores bióticos são mais sutis, porém em longo prazo mais importantes que os fatores físicos. Organismos que vivem em certo habitat são interelacionados e interdependentes. Uma espécie animal ou vegetal poderá tornar-se mais ou menos freqüente ou seu habitat ser invadido por uma espécie que até o momento da invasão não vivia lá. O recém-chegado pode ser um novo tipo de presa, predador, parasito ou competidor por alimento ou espaço. Sua presença pode ser um desafio para os que vivem nesse habitat os quais, obrigados a responder por meio de mudanças adaptativas, podem tornar-se raros ou se extinguir.
O processo de adaptação pode também ocorrer por meio de alternativos. MacArthur e Wilson distinguiram seleção “r” e “K”. A primeira favorece taxas reprodutivas aumentadas e a outra maior eficiência na conversão de alimento e outros recursos em prole. Por exemplo, “em locais onde o clima é rigoroso e sazonal, nos quais os sobreviventes ao inverno iniciam a nova população da primavera, na presença de oferta de folhagem e alimento, espera-se que a seleção “r” favoreça taxas reprodutivas elevadas. Onde o clima é uniformemente benigno, seleção “K” e maior eficiência serão os resultados”. Entre outras coisas a seleção “r” pode favorecer tempos de geração curtos, utilização de maior quantidade de alimentos e mobilidade ampliada de jovens ou dispersão de sementes. Por ação da seleção “K” a preservação de indivíduos ocorre por meio de mecanismos fisiológicos que os “protejam” contra a aspereza ambiental. Um número menor de prole bem dotada é o bastante para a perpetuação da espécie. As seleções “r” e “K” não são obviamente mutuamente exclusivas e podem ocorrer em conjunto. Todavia, elas poderão ser responsáveis pela evolução divergente de descendentes da mesma população ou espécie ancestral.
De modo mais geral, a diversidade orgânica pode ser compreendida como uma resposta da matéria viva à diversidade ambiental física e biótica. Considerando-se esse fato, os diversos milhões de espécies na Terra ainda podem parecer excessivamente exuberantes. Qualquer um poderá ficar fascinado não apenas por causa dessa prodigiosa diversidade, mas também pelas muitas formas de vida bizarras. Por que, por exemplo, deve existir pelo menos duas espécies de Drosophila especializadas a viver exclusivamente em certas partes do corpo de caranguejos terrestres em ilhas caribenhas? Alguém pode ser tentado a pensar que o “lugar ao sol” ocupado por tais espécies seja tão exíguo que não compensaria o esforço de se tornar adaptado para viver naquelas condições. Mas isso além de ingênuo, seria antropomórfico. A seleção natural não “sabe” se os seus produtos herdarão a Terra ou apenas uma porção minúscula dela. Ela é totalmente oportunista. Se houver um nicho vago, apesar de estreito, e se há disponibilidade de variação genética que permita ocupá-lo, aparecerá um sistema genético que o preencherá.
Preadaptação
Seleção natural não é onipotente. Uma das coisas que ela é incapaz de prever são as necessidades futuras de uma espécie ou população. Além disso, algumas observações parecem sugerir que na história evolutiva certos grupos de organismos estavam pré-adaptados a condições que surgiram posteriormente ao aparecimento dessas ´pré-adaptações. Um exemplo simples e significativo é o do desenvolvimento de cepas de diversas espécies de insetos resistentes ao DDT e outros inseticidas potentes. A resistência é devida a alelos mutantes de certos genes nestas espécies; as mutações não foram induzidas por meio do contato com os inseticidas; a exposição aos inseticidas simplesmente eliminou os não mutantes e os mutantes sobreviveram. O DDT só foi descoberto há apenas algumas décadas. Por que os genes que deram origem aos mutantes resistentes estavam presentes nos insetos antes dessa descoberta?
É ingênuo pensar que há genes “para” resistência a inseticidas. Todavia, genes produzem enzimas que catalisam reações metabólicas no inseto “normal” isto é, não resistente. Acontece que a molécula do DDT tem uma estrutura química que atua sobre algumas dessas enzimas. A mutação responsável pela resistência pode produzir uma variante enzimática particularmente eficiente na reação que detoxifica o inseticida ou pode aumentar a quantidade da enzima. A versatilidade bioquímica em insetos é tamanha que se torna difícil desenvolver um inseticida ao qual nenhuma resistência possa ser desenvolvida. Porém isso não significa que insetos foram equipados com uma bateria de genes “premonitórios” sobre quaisquer inseticidas que possam ser desenvolvidos. Os genes executam funções fisiológicas muito distintas. As quais eram desconhecidas antes que o problema prático da resistência induziu os fisiologistas a estudá-lo.
As pré-adaptações presentes na evolução humana têm confundido alguns biólogos, levando-os a acreditar que a evolução possa ser guiada por meio de forças ocultas. Por exemplo, Alfred Russel Wallace, co-descobridor com Darwin da teoria de evolução por seleção natural, maravilhou-se sobre como é possível que “selvagens” “têm cérebros pouco inferiores que a média do homem de nossa sociedade culta” e concluiu que o homem tem “ algo que não foi derivado de seus animais antecessores, alguma coisa que pode ser melhor referido como sendo uma essência espiritual da natureza”. Wallace duvidava que a seleção pudesse desenvolver algumas capacidades humanas, tal qual a capacidade de criar e aprender matemática avançada. Um autor atual também de forma semelhante questionou a validade da teoria de evolução por mutação-seleção. Outro autor pensou que “um cérebro um pouco melhor que o de um gorila seria o bastante para o homem”. Todas as dúvidas semelhantes a estas aparecem a partir de afirmações implícitas de que “caracteres” (ou genes “para” tais caracteres) sejam selecionados independentemente. Porém, mesmo considerando-se a escassez de evidências que dispomos, não podemos sugerir que haja um gene específico para matemática, outro para filosofia e um terceiro para poesia e assim por diante.
Embora algumas pessoas tenham mais facilidade para aprender matemática e outros para filosofia ou poesia, ou para qualquer outra coisa, todas estas capacidades são manifestações da capacidade fundamental do homem de se abstrair, pensar simbolicamente e se comunicar por meio da linguagem. Esta capacidade faz parte dos atributos diagnósticos do Homo sapiens. Embora varie individualmente ela está presente em todos integrantes não patológicos da espécie. Capacidades mentais que distinguem o homem dos demais primatas e de outros animais certamente não são atribuíveis a um único gene, mas a numerosos genes interagentes. Não há dúvidas de que as capacidades mentais humanas tenham sido altamente adaptativas. Formas de organizações sociais humanas e tecnologias que capacitaram o homem a solucionar problemas impostos pelo ambiente são produtos coletivos de cérebros humanos. De acordo com Popper e Ecces podemos dizer que todos os animais inclusive o homem vivem no Mundo I, mas a humanidade tem também os Mundos II e III (Segundo estes autores o Mundo I é o das grandezas físicas, o Mundo II é o dos estados da consciência e o Mundo III é o do conhecimento no sentido objetivo. Veja Martins, R.P. 2004. Teorias. IN: Martins, R.P. & Mari, H. Eds. Universos do Conhecimento. Editora Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, MG) Filosofia e matemática avançada podem não ter sido indispensáveis em si mesmas, pelo menos até os tempos atuais. Porém, são produtos secundários das capacidades mentais que levaram o homem a ocupar, modificar e criar seu nicho ecológico.