Rogério Parentoni mais uma vez nos oferta uma pérola. Desta vez a tradução do clássico:
Dobhzansky, T. 1974. Chance and Creativity in Evolution. Pp. 307-338, IN: Ayala, F.J & Dobhzansky, T. Studies in the Philosophy of Biology. The Macmillan Press, London.
O mesmo segue abaixo publicado em três dias, em 3 partes. Boa leitura.
Em biologia estamos a construir castelos de cartas: resistem tão pouco à lábil criticalidade da adição de uma mera carta inesperada, que passamos a substituir entre si as descartadas, sob o temor que o frágil castelo rua e nós mesmos, seres biológicos imprudentes, não resistamos às fragilidades de nossas próprias concepções.
Dobhzansky, T. 1974. Chance and Creativity in Evolution. Pp. 307-338, IN: Ayala, F.J & Dobhzansky, T. Studies in the Philosophy of Biology. The Macmillan Press, London
Tradução, prólogo e comentários em negrito por Rogério Parentoni, Professor-visitante, Departamento de Biologia, Centro de Ciências, Universidade Federal do Ceará, Campus do PICI, Fortaleza/CE
Prólogo:
Por que traduzir esse capítulo?
Apenas a menção Dobhzansky seria suficiente para expressar o que ele representou para o desenvolvimento da biologia evolutiva e o bastante para justificar esta tradução. Porém, neste caso, o ensaio de Dobhzansky sobre acaso e criatividade na evolução é mais abrangente que o livro também clássico e importante “O acaso e a necessidade” de Jacques Monod: é uma peça esclarecedora sobre detalhes importantes da evolução. Detalhes estes que proporcionarão ao leitor um panorama lúcido e coerente sobre o processo. Além disto, a maioria dos alunos de biologia no Brasil tem acesso restrito a obras sobre filosofia da biologia, em parte por serem herméticas aos que se aventurarem a lê-las desprovidos de tutores ou bagagem conceitual adequada. Também porque no Brasil apenas recentemente houve interesse manifesto, apesar de ainda tímido, de um número maior de biólogos sobre a importância da história e filosofia da biologia para contextualizar a investigação científica e torná-la intelectualmente atraente e mais consistente. Mas há outra razão: o livro foi publicado em 1974 e, por isso, talvez possa ser atualmente considerado por alguns apenas um ancião mal recostado em prateleira empoeirada de algum sebo. Aliás, este tipo de concepção, não raramente equivocado, nessa época de triunfalismo tecnológico, compromete seriamente a possibilidade de uma formação intelectual consistente. Que esta tradução possa ser bem acolhida pelos alunos de biologia e demais interessados. A capacidade rara e lúcida de Dobhzansky em dirimir dúvidas de forma simples e direta, talvez beneficiem aqueles que têm dificuldades em entender a rica e expressiva complexidade do processo evolutivo. De minha parte tive prazer em traduzi-lo. Enfim, incitada a cada instante no transcurso da leitura e tradução deste capítulo, há uma pergunta que deve ser formulada: há algum avanço de extraordinária relevância teórica que tenha contribuído para aumentar substancialmente nosso conhecimento sobre evolução, ou ainda estamos a caminhar amparados pelos ombros dos gigantes responsáveis pela configuração do que é chamado neodarwinismo? Suspeito que a segunda alternativa seja a verdadeira.
Acaso e criatividade em evolução
Diversidade e unidade são aspectos igualmente importantes e fascinantes do mundo vivo. O vírus que causa a febre aftosa é uma esfera de 8-12 milimicra de diâmetro. A baleia azul tem 22 metros e 150 toneladas. Sequoia gigantea pode pesar mais de 6000 toneladas. Há bactérias que se multiplicam a -230 C em poços salinos na Antártica e outras a 80-850 C em nascentes de água quente no Parque de Yellowstone. A amplitude de distribuição do puma vai do Alaska à Patagônia, portanto esse felino vive em uma variedade ampla de climas e habitats. O homem, espécie verdadeiramente cosmopolita, é capaz de criar ambientes propícios à sobrevivência e reprodução na terra e no espaço cósmico. Em contraste, algumas espécies são especialistas estritos. Larvas de Drosophila carcinophila se desenvolvem apenas em sulcos externos dos nefrídios debaixo das abas do terceiro maxilípede do caranguejo terrestre Geocarcinus ruricola nas ilhas caribenhas Mona e Montserrat. Drosophila endobranchia, espécie habitante das Ilhas Cayman, que não é tão próxima filogeneticamente a D. carcinophila, desenvolve-se nas câmaras branquiais da mesma e outra espécie de caranguejo terrestre afim.
Cerca de um milhão de espécies animais e vegetais foram descritas até 1970. (Lewinsohn e Prado 2004, www.conservation.org.br/publicacoes/.../07Lewinsohn_Prado.pdf sintetizam o que se conhece sobre a riqueza em espécies da fauna brasileira). Provavelmente uma quantidade não inferior a esta permanece a ser classificada. Há estimativas de 10 milhões de espécies (Raven, Berlin and Breedlove), mas isto é quase com certeza exagerado. Alguns grupos de organismos se diversificaram tanto que parece demasiadamente excessivo: ¾ do total de espécies animais são insetos. Em contraste há 3700 e 8600 de espécies de mamíferos e aves respectivamente e, provavelmente, apenas um pequeno número de espécies poderá ser ainda adicionado a estes grupos. Cabe aqui uma pergunta: por que certos grupos se diversificaram de forma “demasiadamente excessiva” e outros moderamente?
Apesar disso, subjacente a essa diversidade prodigiosa, todos os seres vivos compartilham similaridades notáveis. Em quaisquer organismos a informação genética é transmitida por meio de dois grupos de substâncias relacionados – os ácidos nucléicos DNA E RNA. O código genético, pelo qual esta informação é traduzida em seqüências de aminoácidos e proteínas, também é invariante. Os mesmos 20 tipos de aminoácidos constituem proteínas de quaisquer organismos, embora proteínas diferentes contenham diferentes proporções destes 20 tipos. Uniformidades surpreendentes prevalecem no metabolismo dos mais diversos seres vivos. ATP, biotina, riboflavina, grupos heme (pigmentos orgânicos complexos de cor avermelhada que contem ferro e outros átomos aos quais o oxigênio se liga quimicamente) tiamina, piridoxina, vitaminas K e B12, e ácido fólico implementam universalmente os processos enzimáticos. Oxidação ácido-lipídica, glicólise, e o ácido cítrico (Krebs) são rotas metabólicas em animais, plantas e microorganismos.
Os “processos bioquímicos universais” acima somente têm sentido à luz da evolução. Todos os seres viventes e fósseis são originários de um único ramo comum. Se ocorreram vários episódios de origem da vida a partir da matéria inerte, apenas os descendentes de uma única fonte primordial sobreviveram. A “unicidade da vida” é deste modo facilmente compreendida considerando-se a origem em comum de todos os seres vivos. Apenas nesse sentido justifica-se a afirmação de Monod: “o problema evolução” foi essencialmente resolvido e a evolução agora se situa confortavelmente do lado de cá da fronteira do conhecimento”.
As abordagens histórica e causal ao estudo da evolução
A diversidade da vida e sua unidade são produtos da evolução. Esta afirmação é correta, mas distante da história completa. Duas categorias de perguntas demandam respostas: históricas e causal. Desejamos traçar e datar a história evolutiva, a filogenia do mundo vivente. Isto agora está próximo a acontecer. Um simples exemplo é o suficiente para ilustrar esta situação: um esforço desproporcionalmente maior tem sido empregado para traçar a origem da humanidade do que a de qualquer outra espécie. Fósseis de hominídeos mais diversificados têm sido mais descobertos nos últimos 20 anos do que anteriormente. Apesar disso, ainda está longe de ser estabelecido quais espécie fósseis foram nossos ancestrais, e quais foram apenas afins colaterais. Questões históricas nem sempre têm apenas interesse teórico. Por exemplo, Coon (1962) afirmou que as demais populações humanas do homem atingiram o status evolutivo de Homo sapiens cerca de 250 mil anos mais tarde que as populações européias. Essa afirmação foi totalmente equivocada do ponto de vista das evidências disponíveis. Porém, o pior é que esta afirmação insensata foi incorporada rapidamente ao discurso racista. Os negros deveriam esperar 250.000 anos para alcançar o mesmo status dos brancos!
Comparado ao registro histórico, a análise causal do processo evolutivo é mais avançada de certas maneiras e menos de outras. A chamada teoria neodarwiniana, sintética ou darwiniana biológica é a visão atual preponderante, embora não seja aceita unanimemente. Em minha opinião ela proporciona um paradigma satisfatório para subsidiar a análise causal. Os postulados básicos da teoria são três: 1) mutações produzem a variação no material genético básico; 2) modificações evolutivas originam-se a partir desse material por meio da seleção natural; 3) em organismos sexuados o isolamento reprodutivo torna irreversível a divergência das espécies biológicas. Supondo-se que este paradigma seja aceito como válido, exceto por detalhes insignificantes, isto significaria que o problema “evolução” teria sido solucionado? Não, há ainda problemas básicos à espera de elucidação. Além disso, tais problemas têm profundas implicações filosóficas e humanistas.
Entre os oponentes do neodarwinismo, a maioria o rejeita alegando que ele atribui ao acaso um papel de destaque na evolução. É absurdo supor que um sistema de enorme complexidade, e ao mesmo tempo com propriedades requintadas de auto-manutenção em ambientes hostis, possa surgir ao acaso, ou por meio de um somatório de acasos. O poeta Auden, que é filósofo da biologia por passatempo, afirmou que milagres seriam explicações mais razoáveis.
Para Jacques Monod, ao contrário, o acaso é o cerne de sua visão evolutiva de mundo: “Acaso puro, totalmente livre, mas cego, está na base desse estupendo edifício evolutivo; esse conceito central da biologia moderna não é apenas mais um entre outras hipóteses possíveis ou concebidas. O acaso é a única hipótese concebível, a única que corretamente se coaduna aos fatos observados e testados”. O acaso reina tanto na base como no cume da evolução: “o homem sabe pelo menos que está só na imensidade insensível desse universo do qual ele emergiu apenas por acaso”. Monod não subestimou o significado disso para o homem. Ele afirmou: “Não há conceito científico qualquer, em quaisquer ciências, mas deletério ao antropocentrismo do que esse, e nenhum outro é capaz de provocar um protesto instintivo nas criaturas fortemente teleonômicas (teleonomia: Informação armazenada dentro de um ser vivo. Teleonomia envolve o conceito de alguma coisa ter um projeto e um propósito. Não-teleonomia é "falta de direção", ausência de planejamento. A teleonomia de uma coisa viva é de algum modo armazenada dentro de seus genes. Teleonomia pode usar energia e matéria para produzir maior ordem e complexidade que somos nós). Eu não creio que a teoria biológica moderna da evolução seja baseada no “acaso” tanto quanto Auden teme ou Monod acredita. O conhecido e desconhecido da situação serão aqui considerados em detalhes.
Evolução programada
Alguns biólogos acreditam que as teorias darwinianas e neodarwinianas sobre evolução atribuem ao acaso um papel indevido na evolução e, por isso, várias iniciativas para encontrar alternativas plausíveis foram tentadas. Elas têm normalmente a forma de teorias sobre ortogênese “evolução é em grande parte um desdobramento de rudimentos pré-existentes” (Berg, 1969). Teorias ortogenéticas variam muito entre si. Algumas são claramente proto-naturalistas, ou seja evolução é impelida ou guiada por meio de forças ocultas. Os finalistas postulam que evolução tem uma meta pré-definida, tal como a produção do homem; mudanças evolutivas seriam como um show de strip-tease, no qual um conjunto de disfarces é removido peça por peça, eventualmente revelando o homem. Por que para “revelar” o homem seria necessário existir alguns milhões de espécies biológicas, que presumivelmente nunca seriam transformadas em humanóides?
Variantes mais convictas da ortogênese fazem analogia da evolução ao desenvolvimento embrionário. O desenvolvimento de uma célula ovogênica humana transcorre por meio de uma série de estágios, a partir da fertilização, clivagem, gastrulação, formação de órgãos, nascimento, infância, adolescência, maioridade, velhice e morte. Estes estágios são pré-determinados, no sentido em que cada um segue o outro em uma ordem fixa à medida que a vida continua. Um programa de desenvolvimento está contido no núcleo das células reprodutivas; até o momento sabemos que este programa está codificado no DNA dos cromossomos, mas só estamos começando a aprender sobre como o programa ocorre. Seria possível que a vida primordial carregasse em si um programa de desenvolvimento evolutivo, que teria sido realizado apenas uma vez em uma longa série de gerações e se repetindo por incontáveis episódios, em numerosos indivíduos, em um período de tempo de 2 ou três bilhões de anos? Essa possibilidade foi defendida por Berg (1922, reimpresso em 1969).
Berg chamou sua teoria de nomogênese, ou seja evolução determinada por lei. No entanto nem ele ou qualquer outro foram capazes de especificar sobre como essa “lei” operava. É incompreensível que as moléculas de DNA possam potencialmente ter sido pré-ordenadas a mudar por bilhões de anos sempre etapa por etapa, em uma linha reta, por exemplo, de procariotos ao homem. Isto não é apenas incompreensível, mas sabemos que não é assim que a evolução ocorre; mutações no DNA não ocorrem em qualquer direção específica. Realmente muitas delas são letais! A similaridade entre o desenvolvimento embrionário (ontogenia) e o evolutivo (filogenético) deve ser considerada em direções opostas às que Berg e outros partidários da ortogênese propuseram. Ontogenia não vai direcionalmente a uma meta, ou seja a um corpo capaz de viver e reproduzir. Direções erradas também acontecem muitas vezes na evolução, porque elas não mantêm a vida e reprodução dos organismos nos quais surgem.
Todavia, há um sentido pelo qual a evolução pode ser chamada ortogenética, caso esse termo não seja usado de tantos modos diferentes, o que neste caso seria melhor evitá-lo.
Tanto quanto eu sei, ninguém ainda foi capaz de propor uma definição satisfatória do que seja progresso evolutivo. Contudo, observando a evolução do mundo vivo como um todo, a partir da substância primitiva autorreprodutível a angiospermas, animais e homem, não é possível deixar de reconhecer que progresso, avanço, ascensão não tenha ocorrido. Como Barbour (1966) disse corretamente “por quase qualquer critério o homem representa um nível superior ao do lodo primitivo”. Simpson (1967) quem talvez tenha contribuído mais que qualquer outro a uma análise crítica das várias noções de progresso evolutivo, todavia, escreveu: “desenvolvimento e progresso são tão evidentes na natureza animal que estas características impressionaram profundamente os biólogos muito antes que o grande fato evolução que os produziu fosse entendido”.
Evoluções geral e particulares
É desejável que nesse ponto se faça uma distinção entre evolução geral e particular. Alguém pode enxergar evolução como um todo, ou estudar separadamente eventos evolutivos específicos. Sob a perspectiva de bilhões de anos, a evolução sem dúvidas logrou resultados que merecem o nome de progresso ou, para os alérgicos a essa palavra, algum outro nome equivalente. Porém, podemos considerar a evolução em detalhes. Desse modo, alguém perderia a visão da floresta (a progressividade da evolução geral) e teria a visão sobre as árvores (a evolução específica). Extinção é o resultado mais comum do desenvolvimento evolutivo das linhagens documentada em forma de fósseis. Morte e extinção são a antítese do progresso biológico.
Adicionalmente, em muitas linhagens encontramos o que pode ser chamado de retrogressão. Esta é mais evidente em alguns endoparasitos. O sistema nervoso, órgãos sensoriais, trato digestivo e musculatura em vários endoparasitos tornaram-se vestigiais ou foram inteiramente perdidos. O que permanece é mais ou menos um saco contendo os órgãos reprodutivos. Mesmo a maquinaria bioquímica pode ficar reduzida e, conseqüentemente, os parasitas podem depender dos hospedeiros para obter alguns produtos metabólicos que seus ancestrais eram capazes de produzir. Porém, pode ser observado progresso em determinadas linhagens. Simpson (1967) afirmou isto de modo admirável: “evolução não é invariavelmente seguida de progresso e nem mesmo o progresso pode ser uma característica essencial do processo. Progresso ocorre no processo, mas não é a essência evolutiva”. A emergência do homem a partir de seus ancestrais não humanos é um exemplo óbvio de progresso em uma linhagem evolutiva específica. Aos que poderiam me reprovar pelo antropocentrismo desta afirmação, posso apenas responder que esse antropocentrismo é apropriado ao senso comum.
Visto em retrospectiva, evolução como um todo tem uma direção geral, do simples para o complexo, de dependência para uma relativa independência do ambiente, para uma autonomia cada vez maior do indivíduo, para um desenvolvimento cada vez maior dos órgãos sensoriais e sistema nervoso transferindo e processando informações a respeito da situação de seu ambiente e, finalmente, uma conscientização cada vez maior. Você pode chamar esta direção progresso ou por outro nome qualquer. No entanto, deve ficar extremamente claro que o fato de a evolução mostrar essa tendência ou direção não significa que ela esteja sendo dirigida por um agente externo ou que tenha sido pré-programada. Esta distinção nem tão sutil tem sido freqüentemente ignorada. Organismos mostram teleologia interna e não externa (Ayala 1968).
O fato de haver direcionalidade em evolução foi chamado por Teilhard de Chardin ortogênese. Obviamente ele pensava na evolução geral. Em sua visão “a partir dos estágios iniciais da evolução, a matéria viva que cobre a terra exibe a feição de um único, gigantesco organismo”. Esse “organismo gigantesco”, metafórico, exibe em seu desenvolvimento uma direção discernível chamada ambiguamente “ortogênese” por Teilhard de Chardin. Sendo um paleontólogo ele sabia muito bem que em linhagens específicas a “ortogênese” leva à extinção e não a qualquer tipo de progresso. De acordo com isto ele descrevia a evolução como um” tateamento” o que certamente significa o oposto de um desenvolvimento retilíneo. Uma espécie vivente pode ser vista como “tateando” no escuro possibilidades de sobreviver e responder adaptativamente a um ambiente cambiante. O ato de “tatear” termina com freqüência em um beco sem saída, interrupções e extinções. Porém, ocasionalmente, este ato resulta em aperfeiçoamento e progresso. Isto para mim é uma descrição adequada e maravilhosa de seleção natural. O que Teilhard não conseguiu entender é que a seleção natural é responsável pela direção tanto da evolução geral (macroevolução) como pelo ato de “tatear” em evoluções específicas (microevolução).
Averiguar apenas que a possibilidade de que a evolução geral seja direcional não equivale a explicá-la. O fato de que há direcionalidade foi descoberto, digamos prematuramente, antes mesmo que as causas fossem sequer aventadas. Supor que o curso da evolução já estivesse programado na vida primordial foi aparentemente a solução mais simples. Porém, essa aparente simplicidade foi decepcionante e pelas mesmas razões que o preformacionismo do século 18 foi ingênuo. Esta noção teve o objetivo de “explicar” o desenvolvimento embrionário por meio da suposição que minúsculas cópias do organismo em desenvolvimento estariam presentes nas células sexuais e teriam apenas que hipertrofiar. Nem a ontogenia e a filogenia podem ser compreendidas deste modo. Se um diminuto facsimile de um organismo adulto estiver “escondido” em uma célula, onde suas progênies estarão “escondidas”? A teoria do “encapsulamento” de Bonnet reduz ao absurdo a preformação ontogenética. A noção de que o homem era de algum jeito presente de forma oculta em células procariotas ancestrais também atinge os limites do absurdo.
Preformação de toda evolução futura na vida primordial pode ser veraz apenas no senso trivial do determinismo universal de Laplace: “qualquer coisa que aconteça é provável de acontecer”. Porém, este determinismo Laplaceano não é confirmado sequer na física. Em evolução biológica, como eu tento mostrar, apenas uma fração diminuta de eventos potencialmente possíveis são realmente realizados. Nossa tarefa é a de descobrir o que permite que aconteçam. Tanto o curso como resultado da evolução não foram programados por quaisquer agentes externos. Todavia, a direcionalidade da evolução não é uma questão de acaso ou acidente. Ela é devida a leis constituídas na estrutura básica da vida. Evolução é nomogênese: não no sentido que Berg supunha que fosse. A “lei” da evolução é a seleção natural.
Mutação - acaso e suas limitações
Evolução abrange alterações do genótipo, a base hereditária, das espécies em evolução. Modificações do fenótipo, devido a mudanças ambientalmente induzidas na manifestação do genótipo, são obviamente importantes em evolução. De fato, quem sobrevive ou morre, reproduz ou permanece sem prole é apenas indiretamente condicionado pelo genótipo- o fenótipo é moldado por meio das interações entre o genótipo e o ambiente. Contudo, se não houver mudanças genotípicas, as gerações subseqüentes iniciar-se-ão a partir da mesma base anterior e, conseqüentemente, mudanças fenotípicas podem ser revertidas devido ao retorno às condições ambientais anteriores. É necessário que haja base genética para que mudanças sejam fixadas. Portanto, qualquer teoria evolutiva deve fornecer uma explicação sobre a origem das mudanças genéticas. Até agora conhecemos dois tipos de mudança genética – mutação e recombinação de material genético.
Há diversos tipos de fenômenos incluídos na mutação. O mais importante é a mutação gênica que acontece por meio da substituição, adição ou deleção de nucleotídios do DNA. Mutações “missense” alteram a seqüência de aminoácidos na proteína que foi codificada pelo gene mutante, ao passo que mutações “nonsense” interrompem a síntese das respectivas proteínas. Mutações que ocorram em genes operadores ou reguladores podem alterar o lugar, tempo ou quantidade da proteína sintetizada. Tais mutações provavelmente são muito importantes em evolução, embora ainda não sejam bem compreendidas. Finalmente, mutações cromossômicas mudam o arranjo dos genes nos cromossomos, deletam ou duplicam blocos de genes ou cromossomos inteiros.
Independentemente de outras funções que genes possam ter, todos servem como moldes para que ocorra a síntese de suas próprias cópias. O processo de cópia é em geral notavelmente acurado, pois se não o fosse a vida não seria mantida. Todavia, pode haver erros que resultem em mutações. As seqüências nucleotídicas nos genes têm sido comparadas a seqüências de letras e sinais ortográficos em letras, sentenças e parágrafos. Deste modo mutações são erros de cópia parecidas a erros tipográficos cometidos pelos linotipistas. Eles são eventos acidentais ou casuais. Todavia, acaso é uma palavra equivocada, em especial quando aplicada ao processo evolutivo. Um evento aleatório não é acasual e sequer uma manifestação de algum princípio de espontaneidade inerente na natureza viva. Nagel (1961) define um evento aleatório como aquele que ocorre; “na intersecção de duas séries causais independentes, ou se em um contexto de investigação uma afirmação que assegure sua ocorrência não seja derivada de qualquer outra coisa”. Mutações são consideradas de ocorrência aleatória ou espontânea quando surgem na prole de progenitores que não foram expostos a qualquer agente indutor. A probabilidade de que ocorra pode ser aumentada por meio da exposição a raios X e outras radiações de ondas curtas, por meio de ultravioleta ou qualquer um agente químico mutagênico. As bases químicas do processo mutagênico estão sendo elucidadas com sucesso.
A palavra “mutação” é mal aplicada não só à causalidade como também aos efeitos da mutação. As mudanças que a mutação causa parece à primeira vista determinadas aleatoriamente. Veja, por exemplo, o caso dos mutantes clássicos de Drosophila descritos por T.H. Morgan e colaboradores. Eles alteraram aparentemente de forma aleatória todos os tipos de caracteres da mosca. No entanto, um estudo mais detalhado corrigiu esta impressão. Mutações do mesmo gene alteram normalmente, embora nem sempre, o mesmo grupo de caracteres. Deste modo, todas as mutações no gene “White” modificam a coloração do olho, e as do “yellow” a cor do corpo, além de outros atributos menos conspícuos.
Estudos bioquímicos sobre o efeito de mutações têm esclarecido a natureza do processo mutacional. Uma molécula de hemoglobina humana tem dois pares de cadeias protéicas, alfa e beta, com respectivamente 141 e 146 aminoácidos. Elas são codificadas por dois genes distintos que, todavia, descendem do mesmo gene ancestral que duplicou nos vertebrados primitivos, nossos ancestrais remotos. Pelo menos 22 diferentes variações das cadeias alfa e 42 da beta foram encontradas em populações humanas. Estas variações evidentemente surgiram por meio de mutações que ocorreram em ancestrais afins ou mais distantes das pessoas nas quais foram descobertas. A mesma variação pode ser encontrada em pessoas não afins em várias partes do mundo: mutantes semelhantes surgiram repetidamente. Muitos mutantes diferem da hemoglobina “normal” (que é o prevalente ou “silvestre”) por substituições únicas de aminoácido em algum lugar das cadeias alfa e beta. Por sua vez, as substituições dos aminoácidos vêm de substituições de nucleotídeos individuais do DNA dos genes que codificam essas cadeias. De quantos modos um gene pode sofrer mutação por meio de uma única substituição de nucleotídeo? Uma cadeia de 141 aminoácidos, semelhante àquela que codifica a cadeia alfa da hemoglobina, é especificada por 423 nucleotídeos. Cada um deles poderá ser substituído por uma das três outras “letras” do “alfabeto”; deste modo poderão ocorrer 1269 mudanças mutacionais devido à substituição de únicos nucleotídeos. Por causa da redundância do código genético, o número de substituições possível de aminoácidos será relativamente reduzido, mas ainda significativo. Este é um amplo repertório mutacional. Mesmo assim não significa que qualquer gene possa ser convertido em outro por meio de uma simples mutação.
Algumas das hemoglobinas variantes de populações humanas causam doenças hereditárias sérias ou mesmo fatais em indivíduos homozigotos para os genes mutantes. Outras são tão raras que aparecem apenas em heterozigotos que têm saúde normal. Contudo, comparações entre hemoglobinas de animais diferentes mostram que quanto menos aparentados tais animais o forem mais elas diferem quanto à substituição de aminoácidos. Evidentemente, algumas mudanças mutacionais que afetam hemoglobinas foram fixadas no transcurso da evolução. Por exemplo, a cadeia alfa humana difere em apenas 1 aminoácido da cadeia alfa do gorila, 17 do boi, 18 do cavalo, 25 do coelho e 71 da carpa. Tais diferenças surgiram com toda certeza não por meio de mutações únicas, mas pela acumulação gradual de mutações, das quais uma grande maioria por meio de substituições de aminoácidos. O acúmulo de mutações pode transformar um gene codificador de hemoglobina em outro que codifique qualquer característica? A mioglobina é uma proteína cuja função é armazenar oxigênio nos músculos. É uma única cadeia molecular de 153 aminoácidos. A mioglobina da baleia difere respectivamente em 115 e 117 aminoácidos das cadeias alfa e beta da hemoglobina humana. Os genes da hemoglobina e da mioglobina descendem do mesmo gene ancestral, o qual sofreu duplicação em nossos ancestrais muito remotos e desde então se diferenciou por meio do acúmulo de mutações.
Todos os genes de todos os organismos podem ser produtos de evolução divergente a partir da entidade primeva autoduplicadora que surgiu da natureza inorgânica há cerca de 3 bilhões de anos. Quimicamente, as mutações que foram acontecendo nessa entidade e seus descendentes eram erros de no processo de cópia, acidentes, acasos. A vasta maioria desses erros era desvantajoso, porque eram contrários à propagação e multiplicação de seus portadores. As mutações retidas e que resultaram em divergência dos descendentes do gene primordial foram as “bem” sucedidas ou pelo menos “neutras” com respeito à sobrevivência e reprodução. Um gene é uma macromolécula e também um sistema orgânico que carrega em si bilhões de anos de história evolutiva. O repertório mutacional de um gene é devido à sua estrutura e, deste modo, de bilhões de anos de evolução. Por isso, o papel do acaso é limitado tanto em nível da origem de mutações quanto de sua fixação ou perda na população.
Mutações são ambíguas do ponto de vista adaptativo. Uma mutação surge independentemente que vá ou não ser útil para o organismo portador. Deste modo não é surpresa que a maioria das mutações sejam deletérias, letais ou no mínimo neutras. Mutações benéficas são uma pequena minoria. Este fato contradiz terminantemente todas as teorias de evolução autogênicas, ortogênicas, lamarckeana e neolamarckeana. Estas teorias tinham que assumir que de um modo ou outro a matéria viva reage a seus ambientes por meio de mudanças genéticas intencionais. Esta afirmativa é implícita e explicitamente vitalista e, indo mais diretamente ao ponto, foi desmentida por meio de numerosas mutações observadas em todos os tipos de organismos.
Outra crença equivocada é a que supõe que cada tipo e velocidade de mudanças evolutivas sejam determinadas pela freqüência com que as mutações ocorrem. Apesar de ter sido mostrado repetidamente que isto é um equívoco, essa concepção errônea se repete até mesmo na literatura recente. O processo mutacional não é sinônimo de evolução, ele apenas proporciona as variações necessárias para que as mudanças evolutivas ocorram. Sem a ocorrência de mutações o processo evolutivo seria interrompido. Porém, mutações ocorrem em todos os organismos. Populações naturais, particularmente as de organismos que se reproduzem sexuadamente, contém material mutacionais armazenado. Falta de material mutacional é provavelmente rara. Aquilo que é construído a partir desse material, além da velocidade com que esta construção ocorre, depende de outros fatores. O principal deles é a seleção natural.