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O Corsário e a Ciência

Textos de divulgação científica e reflexões sobre Ecologia da Saúde, à luz da teoria evolutiva ultradarwinista:

O Corsário e a Ciência

Textos de divulgação científica e reflexões sobre Ecologia da Saúde, à luz da teoria evolutiva ultradarwinista:

27.10.10

SociobioloDIA made in China/parte 1


Sérvio Pontes Ribeiro

Olá pessoal,

 

Obrigado pela recepção aqui no blog professor, vai ser ótimo poder discutir minhas impressões sobre o oriente com vocês. Tive alguns problemas com a censura da internet chinesa mas agora já estou no Japão para a COP 10, aí vai o primeiro ensaio sobre a China e na sequência postarei mais um sobre a World EXPO, mais a frente trarei noticias recem saídas do forno da ONU aqui na COP10.

 

Abraços,

 

Alexandre

 

O monstro responsável

 

 Apesar de sempre ter buscado informações através de diferentes fontes como internet, documentários e livros, os clichês apresentados pelos meios de comunicação de massa ainda faziam parte das minhas expectativas. Achei que iria encontrar um país autoritário, com uma população retraída e submetida ao comando de um governo invisível tendendo ao estilo dos contos do velho Orwell, onde o trabalho e a obediência seriam questões inexoráveis.

Parte disso é verdade, a cerca de 30 anos atrás a China se encontrava num processo extremamente complicado de transição e o autoritarismo era de fato o prato do dia. De certa forma ainda existe um ranço desse tipo de controle (que foi um dos motivos do atraso do meu diário de viajem). Sites como YouTube e alguns provedores internacionais de blogs não são acessíveis pela web chinesa, e mesmo o Google passa por uma censura ao disponibilizar as respostas de procura. Além disso, os processos de imigração do campo para as cidades colocam milhares de pessoas em condições de trabalho realmente desumanas e as questões de direitos trabalhistas daqui ainda são equivalentes as da revolução industrial.

No entanto, assim como nos grandes formigueiros, as decisões governamentais parecem buscar o bem comum do sistema. Políticas de manutenção e criação de empregos são aplicadas em todas as partes, mesmo com a enorme automatização dos serviços e informatização existem muitos cargos de trabalho voltados para o cidadão comum, em cada maquina de tickets de metrô ou em cada caixa automático existe um jovem uniformizado e com conhecimento razoável de inglês disponibilizando informações sobre como utilizar a maquina ou sobre localizações e direções das coisas, o que ajuda muito os estrangeiros a se acharem no formigueiro.

Aparentemente as pessoas parecem bem, o crescimento vertiginoso do país arremessou uma enorme quantidade de pessoas das classes mais baixas para uma classe média alta com pretensões de consumo alinhadas aos ideais ocidentais. Lojas de grifes famosas estão em todas as esquinas e edifícios de mais de 100 andares são comuns no centro da cidade. As zonas mais carentes não parecem nem de longe com as nossas favelas, aqui são grandes edifícios construídos pelo governo com pequenos apartamentos, nada muito luxuoso, mas, sobretudo, digno.

Não vi nenhum morador de rua em nenhuma parte da cidade e os pedintes são raros, e mesmo estes vestem roupas novas e confortáveis. Em contrapartida a quantidade de prostitutas nas ruas é enorme, a cada 30 metros da Nanjim Road (paraíso do consumo) sou abordado por uma garota chinesa com frases como, “how ale you?” “whele ale you flom?”, e coisas do tipo. Mas estas são as mais bem vestidas, sempre de Gulcci e com cheiro de Chanel numero 5, nada comparado à pedofilia do norte e nordeste do Brasil.

De um modo geral a cidade funciona perfeitamente bem, o transito é intenso e barulhento (os caras buzinam por esporte por aqui), mas muito fluido, o sistema de transporte público é muito eficiente e a maioria dos ônibus são elétricos. Em resumo, tudo parece estar voltado para o bem comum do povo (o que me levou a repensar os conceitos que eu tinha sobre as aplicações do comunismo). De certa forma, apesar de ainda haver desigualdades evidentes, as coisas vão bem para a população em geral (pelo menos é o que se pode ver em Shanghai). Mas vale ressaltar que esta é a visão sobre uma das cidades mais ricas da China, o equivalente a nossa São Paulo (apesar da minha impressão sobre Shanghai ter superado em muito a minha sobre a capital paulista), ou seja, ainda não faço idéia de como é a vida nos campos ou nas outras cidades.

No entanto, essa enorme quantidade de pessoas recém chegadas ao mundo insano do consumo ocidental desencadeia enormes demandas de produção e tem como conseqüência a elevação das pressões sobre os recursos naturais a níveis jamais vistos na história da humanidade. Uma única usina de produção de aço aqui em Shanghai, a Baoshan, produz cerca de 36,5 milhões de toneladas de aço por ano, 1,6 milhão a mais do que toda a produção do Brasil. Os números são astronômicos e os impactos seguem no mesmo sentido.

Sendo assim não era de se estranhar que o tema central do WORLD EXPO 2010 tratasse da organização e busca de propostas sustentáveis para as grandes cidades. A adoção de Shanghai como sede do evento pelo governo chinês se deu como parte de um programa de investimentos em tecnologias e propostas para a mitigação dos impactos da superprodução chinesa. Há alguns anos a comunidade científica chinesa vem estudando e modelando os possíveis impactos do crescimento e recentemente chegaram à conclusão de que um colapso próximo será inevitável se nada for feito. Sendo assim, o país mais rico do mundo, (a china hoje tem 2,65 trilhões de dólares em reservas) não hesitou em dar início ao maior programa de desenvolvimento tecnológico em sustentabilidade do mundo.

A primeira WORLD EXPO foi realizada em Londres no ano de 1851 como uma continuidade da tradição européia, originada na França, de exposições industriais, onde eram exibidas as tecnologias mais recentes em termos de processos industriais de produção e aplicações dos avanços científicos da época.

De lá para cá a feira a feira vem sendo organizada mais ou menos a cada 10 anos e já foi sediada por diversos países ao longo do globo. Atualmente seu principal objetivo é promover o intercambio tecnológico e cultural entre as nações, onde cada país que se propõe a participar leva suas principais propostas sobre o tema a ser tratado em cada EXPO. Foi nessas exposições que coisas como a torre Einffel e o telefone foram inauguradas.

A versão de 2010 é de longe a maior feira já feita na história. Com mais de 70 milhões de visitantes ao longo dos 184 dias de exibições o complexo ocupou nada menos que 5.280 metros quadrados e contou com a participação de mais de 200 nações, cada uma com seu espaço próprio de exibição, sendo alguns desses enormes pavilhões com vários andares.

Além dos pavilhões de cada país, a Expo também contou com pavilhões temáticos onde os assuntos referentes ao tema central puderam ser explorados com mais detalhes. Este ano a frase central foi “better city, better life”, cidades melhores, vida melhor.  Neste sentido, assuntos como sustentabilidade, práticas ecologicamente corretas e harmonia urbana tiveram o maior destaque.

 

No próximo capítulo entrarei em mais detalhes sobre a Expo e darei inicio as noticias sobre a COP10, o bicho ta pegando, ou melhor, tão pegando o bicho aqui.

 

Abraços.

 

Alexandre


19.10.10

Os exames de DNA e a androginismo masculino


Sérvio Pontes Ribeiro

 

Isto é uma provocação de sala de aula, mas precisamos delas:

 

É um fato estatístico que por trás das escolhas de casamento, nem sempre está a escolha dos genes dos filhos. Para algumas espécies de aves estudadas, estimou-se até 40% de filhos bastardos nos ninhos! Logo as aves, um grupo que era conhecido como o panteão da monogamia. O fato é que há machos excelentes, bons e os “melhores que nenhum”, e a necessidade absoluta de cuidar da prole e do choco a dois. Há um risco, sempre, ao tentar induzir o macho bom-de-cuidado-parental a cuidar da prole alheia (se ele descobre...), mas acontece e muito!

 

Claramente, aspectos morais e a transcendência ao biológico restringem estas práticas nas populações humanas, mas não tanto. O dado que eu conheço é da Inglaterra, onde é estimado que 15% das pessoas no fundo acham que seu pai é o marido da mãe, e não é! Encarada a realidade, este pode ser mesmo um fato sociobiológico importante. Tal processo pode balancear genes masculinos ricos em testosterona – os machos agressivos, que darão filhos fortes e protetores -  e os menos ricos em testosterona – que vêm dos pais atenciosos e não violentos. O mecanismo de balanço provavelmente acontece devido à eventual chance de alguns dos filhos “do marido” serem legítimos, o que é razoável de considerar, já que assim a fêmea múltipla a expressão gênica da sua prole. Este fenômeno poderia também explicar porque a relação de homens que assumem mulheres divorciadas com filhos é mais tranquila do que o inverso. Afinal, o segundo marido é fruto de uma escolha menos impulsiva, e é a escolha para o resto da vida (que sobrou, claro). Se ele assume filhos prévios, ele pode aumentar a certeza do próximo ser dele. Por outro lado, a mulher que assume os filhos do homem com outra, já entra em disputa de recursos para seu próprio filho, podendo gerar a famosa “madrasta de conto de fada”.

 

Há três gerações ao menos esta relação de importância da testosterona mudou na espécie humana.  Nossos avós matariam qualquer um que se interessasse pela sua mulher, e se não matassem, eram dados como frouxos, e não arrumavam outra. Hoje em dia, ainda mais com as mulheres livres da condenação social devido à gravidez pré-nupcial, a coisa é diferente. Se um homem flagra uma traição, qualquer gesto de violência simplesmente piora o caso dele. Claro, estamos falando de uma classe média educada, onde o acesso a empregos que demandam co-existência pacífica, diplomacia e conexões interpessoais será a fonte de “fitness”. Neste cenário civilizado, o melhor gene também deve ser o menos agressivo, menos “testosterônico”.  Já há quem sugira que este é um cenário que estaria selecionando um perfil de machos humanos andróginos, afeminados e menos agressivos.

 

Entretanto, resta sempre uma dúvida. Afinal, muitos homens másculos, de rosto retangular e viris são também gentis e razoáveis no lido com a comunidade e seus colegas (e muitos franzinos, assimétricos e pouco atraentes fisicamente, são absolutamente irascíveis). Assim, não seria artificial a relação entre masculinidade e estabilidade emocional? Não seria uma falácia “woodalleana” para fazer os franzinos se sentirem mais sexy por serem só inteligentes? O fato é que é sugestivo, e estatístico, a minimização do apelo “macho” nas gerações mais novas. Agora, se isto é pela manipulação do fenótipo (depilação, maquiagem, menos musculação etc), ou pela seleção natural, não creio que alguém tenha medido.

 

Existe, porém, uma outra possibilidade, um trote biotecnológico no poder recém adquirido das mulheres independentes. As mulheres modernas emancipadas tinham adquirido um enorme poder de selecionar os pais de seus filhos e o marido ao mesmo tempo, e independentemente. O fato de não ser mais condenável o casamento pós-fecundação, gera a possibilidade de, alheia ao risco da traição à relação estável, a mulher engravidar de um e convencer o “correto” de casar com ela. Claro, tudo isto antes do teste de DNA. Testes de paternidade, anuncia a ordem vigente, protege a mulher do homem que não quer assumir o filho legítimo, mas a impede também de gerar um filho ilegítimo.

 

A consequência inevitável disto poderia ser o aceitar da paternidade do marido, diminuindo a frequência de genótipos machões-ricardões na população? Cornos mansos, torçam!

15.10.10

SociobioloDIA made in China


Sérvio Pontes Ribeiro

Prezados leitores,

 

Meu ex-aluno de mestrado e colaborador, Alexandre Bahia Gontijo, foi convidado para compor a delegação brasileira, como observador, no 10ª encontro da Conferência das Partes (COP10), onde se realizará a Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD). Sendo o mesmo um atento observador intelectual dos mundos, das coisas e das gentes, lhe emprestei a SociobioloDIA por este período, na esperança de ganharmos seu diário de viagem.

 

Seja bem vindo Alexandre!

 

Sérvio

 


14.10.10

Pela criação do Parque Nacional das Águas do Gandarela


Sérvio Pontes Ribeiro

A Mina do Apolo vai acabar com uma das paisagens de canga e campo rupestre mais espetaculares do mundo, e isto é só o começo do que a mineração intenciona fazer neste Estado. Se não impusermos resistência social, com cobrança de medidas ambientais realmente efetivas, e áreas de reserva não mineráveis, seremos grande importadores de alimento, água potável, e outros bens... problema vai ser de onde importar! Isto é a ponta de uma cadeia cega que precisa ser revista pela resistência.

 

Abraço

 

Sérvio

 

Abaixo-Assinado (#7030): Pela criação do PARQUE NACIONAL ÁGUAS DA SERRA DO GANDARELA:

 

 

Destinatário: Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela

 

 

>> Assine este abaixo-assinado << <http://www.abaixoassinado.org/assinaturas/assinar/7030>

 

 

Nós, abaixo-assinados, dirigimos este manifesto às autoridades competentes para apresentar a proposta de preservação da Serra do Gandarela. Localizada nos municípios de Caeté, Santa Bárbara, Barão de Cocais, Rio Acima, Itabirito e Raposos/MG, a Serra do Gandarela integra a Reserva da Biosfera do Espinhaço e abriga as maiores manchas de Mata Atlântica, da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), e de Campos Rupestres sobre Cangas Ferruginosas, de Minas Gerais. Grande diversidade de flora e fauna, com espécies raras e em extinção, cavernas, sítio paleontológico e um conjunto expressivo de cachoeiras e mananciais, que abastecem vários municípios da RMBH e as bacias dos rios das Velhas e Piracicaba, fazem da Serra do Gandarela um local de valor inestimável. Diante desta realidade, nós abaixo-assinados, propomos a criação do PARQUE NACIONAL ÁGUAS DA SERRA DO GANDARELA como a melhor alternativa de proteção e desenvolvimento ambiental, turístico e cultural da região.

14.10.10

SERRA NUNCA! Publicações antigas, para a história não ser esquecida


Sérvio Pontes Ribeiro

Publicações antigas, para a história não ser esquecida

 

by Sérvio Pontes Ribeiro on Wednesday, 13 October 2010 at 22:09

 

 

 

 

 

 

 

 

Em 2001, no alge do governo FHC/PSDB, um grupo de jovens doutores iniciou um movimento nacional para abertura de concursos para doutores nas instituições de pesquisa e ensino no Brasil. Não havia concursos, e a maioria dos alunos de doutorado que estiveram comigo no exterior, não voltaram devido ao completo sucateamento que o PSDB fez no ensino superior brasileiro. A coisa só mudou com um artigo-protesto na Nature!

  

   

O Serra já disse mais de uma vez: "vou investir no ensino básico, fundamental e técnico". Não querem brasileiros pobres, pretos, índios ou que sejam, concorrendo aos postos pensantes do Brasil, com seus filhos ricos? Será por isto? O fato é que com PSDB, não há inteligência nem oposição! É só ver a VEJA! Depois dizem que não tem imprensa livre no Brasil. São livres para mentir em capa!

 

  

 

 

 

 

 

http://www.facebook.com/profile.php?id=100001576980965#!/notes/servio-pontes-ribeiro/publicacoes-antigas-para-a-historia-nao-ser-esquecida/159111960777104

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

03.10.10

Retirando o que disse sobre os 20 milhões


Sérvio Pontes Ribeiro

acabando rápido com uma ilusão.... após ler os comentários no blog da Marina sobre o segundo turno, vi uma orda de evangélicos fanáticos, amedrontados com o PT, o velho comunismo, e outros velhos chavões. Em outras palavras, vi os "cristãos" membros da hipócrita e retrógrada classe média conservadora em meio ao grande apoio da Marina.

 

O Brasil é uma bizarrisse, é um absurdo, é uma loucura. E estamos mesmo perdidos... começamos a deixar de estar com o Lula, certamente se for para continuar tem que ser com a Dilma, nem que seja para brigar diariamente com ela - ao menos, sabemos com o que estamos brigando, pois com o PSDB, é tudo maquiagem, tudo mentiras!

03.10.10

Uma tradução de Dobhzanski - Parte 3 e final


Sérvio Pontes Ribeiro

Rogério Parentoni mais uma vez nos oferta uma pérola. Desta vez a tradução do clássico:

 

Dobhzansky, T. 1974. Chance and Creativity in Evolution. Pp. 307-338, IN:  Ayala, F.J & Dobhzansky, T. Studies in the Philosophy of Biology. The Macmillan Press, London.

 

O mesmo segue abaixo publicado em três dias, em 3 partes. Boa leitura.

 

Parte 3 - Radiação adaptativa

Há vários exemplos de espécies que são muito afins e, claramente descendentes de um ancestral comum, que divergiram em seus modos de vida a fim de explorar oportunidades diferentes oferecidas por seus ambientes. Tais exemplos de radiação adaptativa são particularmente esclarecedores quando a divergência ocorreu recentemente em uma escala de tempo geológico. Os tentilhões de Darwin são exemplos clássicos e tão bem conhecidos que não é necessário mencioná-los aqui. A radiação adaptativa de moscas drosofilídeas é até mesmo mais espetacular embora seja menos conhecida. (Carlson, Hardy, Spieth and Stone 1970). O arquipélago havaiano tem 6 ilhas vulcânicas que abrigam 650 a 700 espécies de drosofilídeas. Destas apenas 17 ocorrem em outros lugares e foram provavelmente introduzidas pelo homem neste último século. As espécies remanescentes são endêmicas. A idade geológica das ilhas habitadas pelas drosofilídeas varia de 1 a 5 milhões de anos. Diversas ilhas mais antigas, até 15 milhões de anos, agora estão erodidas e provavelmente têm poucas se alguma espécie. É apenas conjectura falar sobre quando o ancestral ou ancestrais das espécies endêmicas chegaram ao Havaí, mas 15 milhões de anos pode ser considerado o limite superior.

A fauna mundial de drosofilídeas abrange pelo menos 2000 espécies. As endêmicas constituem 1/3 do total. A área total das ilhas havaianas é cerca de 1/3 da área da Holanda. Em lugar algum do mundo há um território desse tamanho que abrigue o número de espécies do Havaí. As endêmicas havaianas pertencem a 2 grupos- os gêneros Drosophila e Scaptomyza e seus derivativos. Ambos os gêneros ocorrem no mundo todo, mas as endêmicas “scaptomyzoid” são mais numerosas que as do restante do mundo. As endêmicas podem ter sido derivadas de apenas duas espécies ancestrais, uma Drosophila e uma Scaptomyza que alcançaram o arquipélago por transporte acidental a partir da Ásia ou da América, mais provavelmente do primeiro continente.

A diversidade morfológica, ecológica e comportamental das endêmicas havaianas supera às de Drosophila e Scaptomyza de qualquer lugar do mundo. As drosofilídeas maiores e menores são havaianas. Certas partes do corpo em algumas espécies sofreram modificações que quase chegam à emergência de novos órgãos. Os tarsos em forma de colher são estruturas encurtadas, achatadas e côncavas; tarsos em forma de garfo têm um apêndice longo desenvolvido no ápice ou na base do basitarso anterior; há espécies com tarsos cerdosos, em forma de clava, maçaneta, gancho e etc. essas modificações são encontradas especialmente em machos e parecem ser usadas em rituais para corte. Os comportamentos de corte e acasalamento são também extraordinariamente diversificados, incluindo comportamento em “leks” que ocorre quando um macho estabelece um território para o qual fêmeas  são atraídas e do qual ele rechaça agressivamente intrusos e especialmente outros machos. Isso não é registrado para outras drosofilídeas exceto para as havaianas. Diferentes espécies utilizam folhas, ramos, flores e frutos fermentados, fungos e fluxos de secreção de várias plantas como locais para oviposição e suprimento alimentar para as larvas. Espécies de scaptomizideas do gênero Titanochaeta utilizam-se de sacos ovígeros de aranhas- uma dieta incomum para uma drosofilídea. Por que tal radiação adaptativa pródiga, mais pitorescamente descrita como uma “explosão evolutiva”, ocorreu no Havaí? A superabundância de drosofilídeas que lá ocorreu contrasta com a intrigante escassez e até mesmo ausência de outras famílias de dípteros e outras ordens de insetos. A inferência mais provável é a de que os ancestrais  das drosofilídeas chegaram ao arquipélago antes da maioria dos demais grupos de insetos. Isto não porque tenham meios mais eficientes de dispersão. Tanto quanto se sabe em nenhum outro arquipélago houve uma “explosão evolutiva” como a que ocorreu no Havaí. Todavia, uma vez tendo chegado lá encontraram uma grande diversidade de oportunidades ecológicas ainda não exploradas por outros insetos. Elas responderam adaptativamente de modo muito rápido. Isso não significa que duas espécies imigrantes tenham simultaneamente se dividido em 600 ou 700 espécies endêmicas. Carlson, Hardy, Spieth and Jones mostraram que a radiação envolveu muitas migrações de ilha para ilha. De fato muitas espécies são endêmicas em apenas uma ou parte de uma única ilha. Um ancestral da espécie A colonizou outra ilha dando origem a uma espécie B que por sua vez recolonizou algumas vezes a ilha da espécie A. e deu origem a uma espécie C. As ilhas mais geologicamente mais recentes provavelmente têm um número relativamente maior de espécies recentes. No entanto seria equivocado concluir que cada nicho ecológico desocupado seria necessariamente e prontamente ocupado por uma nova espécie que possuísse a forma de adaptabilidade adequada. A evidência conclusiva é a de que, ao contrário, um nicho inexplorado pode não evocar uma resposta adaptativa por um longo tempo. Um exemplo extremo é o do homem. Não há uma razão óbvia de porque o homem ou outra espécie capaz de se comunicar simbolicamente e se adaptar por meio cultural e tecnológico não possa ter sido contemporânea dos dinossauros. O nicho ecológico do homem permaneceu desocupado até o Plioceno remoto ou recente. A terra tornou-se habitada muito tardiamente em comparação à água. A mariposa-cigana quando introduzida na America se deu melhor do que na Europa seu lugar de origem. Biólogo algum duvidaria que muitas novas formas de vida poderiam evoluir e encontrar locais para viver. Mas apenas um biólogo imprudente ousaria prever quais seriam essas formas e onde viveriam. Estranho que tais previsões têm sido feitas com invejável auto-segurança por “exobiólogos” quando tratam da evolução hipotética, da vida hipotética, em habitats extraterrestres hipotéticos.Eles são, para dizer de modo elegante, inconvincentes. Segundo Slobodkin não há uma teoria de evolução previsiva ou retroprevisiva. Sem evidências paleontológicas não é possível reconstruir a ancestralidade de organismos viventes. Esforços heróicos foram feitos por zoólogos e botânicos no século 19 e início do 20 por meio de inferências a partir de anatomia e embriologia comparativas. Os resultados foram, no entanto, insatisfatórios. É suficiente lembrar os organismos ancestrais hipotéticos de Haeckel que adornaram muitas páginas de seu livro, mas que em realidade nunca existiram.

Devido o progresso da paleoantropologia é possível agora vislumbrar a ancestralidade da humanidade. A seqüência Ramapithecus-Australopitecus-Homo erectus-Homo sapiens provavelmente proporciona uma idéia válida de alguns dos estágios da evolução humana. Entretanto há a questão: Australopitecus evoluiu para H. erectus e esse para H.sapiens? A resposta deve ser negativa. Dado um estágio, não é possível prever qual deva ser o próximo. Há pelo menos duas espécies de Australopitecus contemporâneas entre si. Mas apenas uma delas foi a nossa ancestral. A evolução da outra resultou em extinção. A despeito de nossa incapacidade de prever não é crível que o homem tenha surgido por meio de uma jogada afortunada de algum dado evolutivo ou celestial.  Nem surgimos acidentalmente ou fomos predestinados a surgir. Em evolução, acaso e destino não são alternativas. Essa é uma situação em que na teoria científica podemos invocar algum tipo de dialética Hegeliana ou Marxista. Necessitamos de uma síntese da “tese” do acaso e da “antítese” da predestinação. Não tenho competência filosófica para tal tarefa. Peço ajuda a meus colegas filósofos.

Criatividade da evolução

Considerando-se que não é possível prever evolução, a teoria às vezes tem sido acusada de ser apenas quase-científica. Merecendo ou não o rótulo honorífico “cientifico”, a teoria continuará importante e excitante enquanto existirem pessoas preocupadas em entender a si mesmas e a posição que têm no universo. Certamente a imprevisibilidade da evolução não é inerente à sua natureza. As causas internas e ambientais da evolução constituem um nexo muito complexo para ser resolvido no estado atual do conhecimento. De qualquer maneira a evolução não é nem determinista ou “animista” (no sentido de Monod). Prefiro chamá-la criativa (embora não no sentido de Bergson).

Poderia a palavra “creativo” ser aplicada a um processo que não tem previsão e qualquer capacidade para inventar um meio de atingir um dado objetivo? Talvez evolução seja o único processo que carece de intencionalidade e previsão, mas que ainda é criativo. O significado do verbo “criar” nos dicionários é “concretizar”, “causar a existência de algo”. Criação é também “apresentar uma nova concepção em uma personificação artística”. A evolução não produz apenas novidades, mas tais novidades são personificações de novos modos de vida. Focalizando nossa atenção em indivíduos que se reproduzem sexuadamente com parceiros não afins , notaremos que cada organismo, talvez com raríssimas exceções, é geneticamente singular e não recorrente em outras gerações. A evolução produz novidades por meio de arranjos de padrões gênicos previamente inexistentes. Em longo prazo percebemos que  a novidade produzida é muito mais que um mero rearranjo de partes pré-existentes. Ela não pode ser comparada a novos padrões gerados, por exemplo, em um caleidoscópio. Novos padrões biológicos têm certa coerência.

O critério de coerência em biologia é sobrevivência. Uma ampla maioria de padrões gênicos teoricamente possíveis não é perpetuada. Se pudessem ser obtidos, recombinantes de genes humanos com os de Drosophila, por exemplo, quase com inteira certeza não sobreviveriam. Cada nova forma de vida que aparecem por meio da evolução pode, com licença semântica moderada, ser considerada como uma personificação artística de uma nova concepção de vida. Obviamente há diferenças, mas também semelhanças significativas entre o processo evolutivo e a atividade artística. O primeiro não envolve a desempenho que o segundo tem ao efetivar um resultado desejado (excluo a pseudo-arte “aleatória” comum, “poesias” que abrangem uma sucessão de palavras sem significado e “música” produzida por meio de sons concatenados ao acaso ou pinturas feitas por meio de pinceladas ao acaso). Um observador deve ser capaz de perceber uma nova forma de vida personificada em cada espécie biológica.

Arte é uma manifestação de atividade estética. Um observador sensível e culto deverá obter satisfação estética ao descobrir e contemplar a aparentemente infinita variedade de novas estruturas e modos de vida biológicos. Eu não quero dizer especificamente a beleza de pássaros ou borboletas.  Qualquer corpo vivo é um trabalho de arte. Sua beleza está em sua teleologia interna (Ayala 1968) que permite ao corpo permanecer vivo como um indivíduo ou espécie. A beleza das criações artísticas é imposta pelos seus criadores, isto é teleologia externa. É óbvio que não estou querendo dizer que a qualidade artística de um corpo vivo seja gerada para a satisfação humana. Para os organismos ela é utilitária e funcional. Apesar disso, podemos notar que a teleologia interna para o homem tem um apelo estético.

A evolução cria novos sistemas vivos que ocupam nichos ecológicos disponíveis e acessíveis.  Como comentado acima, nem mesmo nichos ecológicos diminutos e acessíveis serão descartados. Novos nichos ecológicos surgem constantemente. Essa é a causa de o porque a evolução não para. Entretanto, o que torna um nicho ecológico vago acessível? É sem sentido afirmar que uma nova mutação surge para que seu portador ocupe um nicho disponível. A situação é mais complexa. Não há duvida que mutações gerem novos materiais genéticos para a evolução, porém nesse contexto torna-se trivial.

Não sabemos quantos genes não redundantes há em um único gameta humano. Há estimativas de um milhão a uma centena de milhão. Com certeza não seria uma nova mutação maravilhosa em um único que gene que transformaria um chimpanzé em um homem. Essa transformação a partir de um ancestral comum ocorreu por meio e de uma lenta e gradual reconstrução do sistema genético. Não sabemos quantas mudanças gênicas ocorreram, certamente foram muitas, da ordem de milhares e possivelmente milhões. Exceto em espécies raras ou em que há cruzamento entre afins, O “pool” gênico de uma população sexuada contem um número incontável de variantes genéticas surgidas por meio de mutações. A construção de muitos sistemas genéticos diversos pode se iniciar a partir desse material. O problema é saber para quais dessas muitas direções disponíveis o processo de construção seguirá. A presença de cimento, tijolos, madeira e outros materiais possibilitam a construção diferentes tipos de edificações. O material de construção em si não limita o tipo de edificação que será construído.

A criatividade da evolução se manifesta não pela magnitude de mutações, mas por meio da seleção natural e de outros processos genéticos. A acessibilidade de nichos ecológicos não depende da quantidade de mutações, mas sim desses processos. Além disso, e onde a engenharia biológica difere da humana, é fato de que o edifício a ser construído não é decidido antes que a construção se inicie. As “decisões” são realizadas durante o processo de construção. Certamente esse é um método dispendioso de se construir algo. No entanto, a evolução não hesita ou cessa porque aparentemente na história remota a vida tenha ficado sem numerosas linhas de descendência. Atualmente temos algo em torno de 2 milhões de espécies e bilhões de raças e populações locais. O resultado biológico dessas subdivisões reflete uma evolução mais ou menos independente entre si. Wrigth (1932) reconheceu que populações isoladas podem ser consideradas como porções que exploram novas possibilidades de vida. Essas “explorações”, no entanto, não são totalmente ao acaso, nem mesmo no senso estrito de que mutações sejam ao acaso e de eventos casuais. Não devemos nos esquecer que seleção natural é um processo anti-acaso. Ela atua mais do que meramente permanecer na expectativa de que uma combinação “exitosa” genes surja a partir da dupla mutação-recombinação sexual. Ela direciona a combinação “exitosa” pela acumulação gradual de componentes favoráveis. Qualquer seqüência de eventos controlada pela seleção direcional, e mesmo pela normalizadora, é um processo cibernético. Ele transmite para o gene pool da população informações sobre o estado do ambiente. A história evolutiva do mundo vivo não deve ser pensada como se fossem lances vencedores em uma roleta de cassino.

A adaptabilidade a certo ambiente pode ocorrer de várias maneiras. Todos os seres vivos têm as mesmas necessidades básicas: alimento, local para viver, reprodução e proteção contra ameaças ambientais. Não obstante há milhões de espécies que satisfazem a essas mesmas necessidades de milhões de maneiras diferentes. Para oferecer exemplos mais específicos -  um animal de sangue quente pode sobreviver a invernos muito frios por ter uma pele espessa,  ficar hibernando, migrar para regiões quentes ou usar o fogo para aquecer acomodações apropriadas. Uma planta de deserto pode proteger-se contra dessecação por meio de folhas modificadas em espinhos, folhas cobertas por óleos ou material resinoso, folhas que se desenvolvem durante os períodos quentes e se “fecham” durante períodos secos ou por adequar seu ciclo de vida às estações quentes. Proteção contra predadores pode ser obtida por comportamentos de alerta e evasão, camuflagem, coloração protetora, impalatabilidade ou por defesa ativa que resulte em injúrias ao predador, por ter elevadas taxas reprodutivas que saciem os predadores e possibilitem a parte da prole escapar e finalmente por meio de defesa grupal. A inseminação em animais é realizada por copulação interna, espermatóforos, ou pela liberação de gametas na água onde eles se atraem por meio de sinais químicos ou se encontram ao acaso.

Todas as estratégias adaptativas acima são utilizadas de fato por diferentes formas de vida. Isso nos leva a uma pergunta incômoda do seguinte tipo: se a coloração protetora contribui para a adaptabilidade de uma espécie A, porque uma espécie B também não a tem? A única resposta é a de que a B sobrevive e reproduz bem sem a coloração protetora. Talvez uma pergunta mais adequada seja: Por que A adaptou-se por meio de coloração protetora e B por uma adaptação distinta? Respostas satisfatórias se existirem são raramente disponíveis para tais tipos de questões. Sabemos que uma mesma estratégia adaptativa pode será adotada independentemente em diferentes linhagens filogenéticas. O que pode resultar em convergência evolutiva. Cactáceas na America e euforbiáceas do deserto da África do Sul evoluíram formas resistentes à seca extremamente semelhantes.  Cuidado parental e defesa agressiva da prole são encontradas em grupos animais bem diferentes. Em contraste, algumas estratégias apareceram apenas uma vez. Adaptabilidade por meio de comunicação simbólica e cultura transmitidas extra-geneticamente só evoluíram na espécie humana. Atribuir isso a ao acaso não é a melhor maneira. Admitir também que foi predestinação é incompatível com tudo que se sabe sobre as causas da evolução. A analogia com a criatividade artística é pelo menos descritivamente adequada, apesar das óbvias diferenças com o oposto.

Transcendência evolutiva

Meu colega Dubos (1962) escreveu: “o que ainda é completamente misterioso tanto quanto o é, para muitos seres humanos, uma qualidade mística é o fato de que a vida tenha emergido da matéria e que a humanidade tenha tomado um caminho que a está afastando cada vez mais de suas origens toscas”. Místico pode significar tanto “não aparente aos sentidos quanto não óbvio para a inteligência” ou “ consciência de valores pelos menos em parte acima e além da capacidade do simbolismo atual em expressá-lo, em especial a consciência profunda do integral como a unidade das coisas” (Thorpe 1965). A primeira definição é inútil, mas para uma compreensão mais detalhada da biologia a segunda pode ser importante. De qualquer jeito, espera-se que o mistério esteja apenas na forma pela qual foi mal expresso.

A origem da vida e do homem são realmente os pontos-chave da evolução da Terra e provavelmente do universo. Aparente há três modos básicos de se conceber os produtos dessas realizações. O primeiro é o do tradicional vitalismo e criacionismo. A vida surgiu quando uma força vital foi adicionada à matéria inanimada e a implantação da alma foi a origem do homem. O segundo é defendido pelos panpsiquistas ou panvitalistas. Estes são a minoria, mas talvez uma maioria cada vez maior entre os filósofos, tais como Whitehead e Teilhard de Chardin e entre os biólogos Rensch (1971) e Birch (1971). Rensch  não vê “ contraste algum entre mente e matéria. Devemos reconhecer que toda “matéria” é caracteristicamente protofísica... Por conseguinte não há em princípio diferenças entre a realidade fenomenológica e ser, mas apenas entre dois sistemas de relações: aqueles pelos quais entram um jorro de consciência e aqueles que permanecem extramental”. Isso simplifica demasiadamente os problemas – vida e mente realmente nunca se iniciaram. Sempre estiveram presentes em toda a matéria em estado incipiente. Mas se isso aconteceu evolução não passa de uma história sem graça. Ela envolve apenas desenvolvimento de algo incipiente e não a produção de novidades.

O terceiro modo reconhece as origens da vida e do homem como as duas maiores transcedências. Transcedência significa ultrapassar os limites comuns (não confundir com transcendentalismo). Não há dúvidas de que a vida transcende os limites comuns da matéria inanimada, e que as capacidades mentais humanas transcendem as de quaisquer outros animais. Nenhuma energia adicional, chamada força vital, é adicionada para dirigir o fluxo dos processos físico-quimicos que ocorrem nos sistemas vivos. Embora sejam regularmente sintetizados estritamente de acordo com leis físico-quimicas uma enorme quantidade de compostos químicos que não ocorrem extracorporeamente. A química orgânica, bioquímica e fisiologia química se desenvolveram por conseqüência desses fatos. Substância alguma chamada alma deve ser considerada como presente no cérebro humano, mesmo se considerarmos que o homem desempenha atividades que nenhum animal desempenha. A psicologia humana abrange assuntos não cobertos pela zoopsicologia, a sociologia lida com processos que têm apenas remota semelhança com a zoosociologia e as humanidades, como o próprio nome significa, lida exclusivamente com a conduta e realizações humanas.

A emergência do homem é temporalmente muito mais próxima a nós que o início da vida. Apesar disso, esse evento mais recente de grande transcendência evolutiva apresenta problemas mais desafiadores que os do início da vida. A partir de agora concentremos nossa atenção sobre o homem. As suas estruturas corporais sofreram modificações significativas durante a ascensão do homem a partir de seus ancestrais parecidos com o chimpanzé. Simpson(1969) listou 12 caracteres estruturais e 10 psicológicos que distinguem a espécie humana. Os estruturais são principalmente os relativos à postura em marcha ereta. De acordo com Simpson, “a característica crucial foi a aquisição da postura ereta e locomoção estritamente bipedal. A maioria das demais peculiaridades anatômicas humanas foram conseqüência daquelas ou co-adaptadas a elas”. Todavia, as peculiaridades estruturais humanas só são suficientes para colocar o homem em uma família zoológica monotípica, contendo apenas uma espécie vivente. As capacidades mentais são, todavia, muito mais distintivas. Se a classificação zoológica fosse baseada em características psicológicas ao invés de estruturais, o homem poderia ter sido considerado um phylum ou até mesmo um reino distinto.

O homem tem autoconsciência e consciência da morte. Bidney (1953) descreve a autoconsciência como: “O homem é um animal autoreflexivo de tal forma que é capaz de objetivar a si próprio, de se colocar aparte de si mesmo e de tecer considerações sobre o tipo de ser que ele é, o que deseja e o que gostaria de ser. Outros animais podem ser conscientes do que lhes afeta e de objetos percebidos; somente o homem é capaz de refletir, de autoconsciência e de pensar em si como um objeto”. Ele também é único na capacidade de saber que vai morrer. Todos os animais morrem, mas apenas o homem sabe que a morte é inevitável.

Há um contraste curioso entre autoconsciência e consciência da morte. A primeira é de conhecimento pessoal e a segunda de conhecimento público. Sherrington(1955) disse: “ uma distinção radical surgiu entre vida e mente. A primeira é uma questão de física e química; a última vai além da física e química”. Vai além porque é vivida introspectivamente mais do que objetivamente observada. Para mim, minha mente é a mais imediata e indubitável de todas as certezas. Ela é a base do “cogito ergo sum” de Descartes. Infiro que outras pessoas também têm mentes, porque a maior parte do tempo suas ações se assemelham às minhas, as quais são produtos de minha autoconsciência. Para outros animais essa evidência é totalmente inalcançável; embora alguns possam ter traços de autoconsciência e outros não.

Em contraste à autoconsciência, a consciência sobre a morte leva a tipos de comportamento que são objetivos, tais quais os cerimoniais de enterro e outras formas de cuidado ou preocupação com a morte. Todas as sociedades humanas sejam primitivas ou avançadas manifestam tais preocupações. Animal algum o faz. Formigas removem machos mortos em seus ninhos junto a outros “lixos” e térmitas os consomem como alimento. Para o homem os ritos e cerimônias fúnebres diferem bastante entre sociedades distintas. Elas vão desde a veneração pelo medo até o sepultamento, cremação ou exposição do cadáver a comedores de carniça. Além disso, ritos funerais são conhecidos desde os Neandertral ou mesmo do Homo erectus. Enterros paleolíticos e neolíticos foram descobertos por arqueólogos. A consciência da morte e aparentemente quase todas as crenças religiosas associadas a ela ou dela derivadas, acompanham o homem desde o alvorecer da humanidade.

Embora sejam profundamente diferentes em suas manifestações, a autoconsciência e a consciência da morte são causalmente relacionadas. Quando no dizer de Bidney o homem se tornou um “animal autoreflexivo” ele provou o fruto proibido da Arvore do Conhecimento de Deus e do Diabo. Ele descobriu que a morte é o seu destino pessoal e inevitável. Apenas um ser que conheça seu destino pode ter uma “Preocupação Remota” e manifestar preocupação pela morte de seus coespecíficos. Ele distingue o sagrado do profano. Qual o sentido que um biólogo pode ter sobre essas faculdades humanas? A seleção natural implantou-lhe a autoconsciência e a consciência da morte? Sugiro que a evolução adaptativa seja diretamente responsável pela autoconsciência. Porém, como a consciência da morte é um produto inevitável da autoconsciência, ambos podem ser produtos dessa forma singular de adaptação evolutiva (Dobzhansky 1967). Autoconsciência, como foi mencionado acima, é refratária a estudos objetivos, muito embora não haja dúvidas que desempenha um papel importante nas formas de organização social humanas, as quais são basicamente distintas das de outros animais. O homem sabe que é responsável pelo seu comportamento pessoal e ações e considera outros homens responsáveis pelos seus. O homem distingue o bem do mal. Ele é um ser ético. Reflete sobre seu passado e faz planos para seu futuro e de seu ambiente, incluindo outras pessoas. Ele raciocina e pode modificar seu comportamento de acordo com sua experiência e suas decisões tomadas livremente. Seja ou não, em um sentido metafísico, seu desejo livre o homem tem pelo menos uma ilusão mental de que é livre.

O fato de que as formas de organização social humanas sejam adaptativas do ponto de vista biológico é inquestionável. Sociedades de insetos (formigas, cupins, vespas e abelhas) também têm sucesso. Porém são baseadas em um princípio bem distinto da plasticidade comportamental humana. Esse principio é o comportamento instintivo ao invés das dúvidas e incertezas da autoconsciência. Este é mais um exemplo de adaptabilidade alcançada por meio de maneiras distintas. No entanto, a espécie humana alcançou um sucesso evolutivo bem além daquele alcançado pelas demais espécies. Surgindo como uma espécie rara em algum lugar da África, espalhou-se pelo mundo todo. Sua população aumentou dezena de milhares de vezes no último milhão de anos. Ela cresce rapidamente dominando o planeta Terra. Em qualquer nível, essa dominância não tem paralelo em outra espécie, exceto e pode ser estranho dizer, alguns vírus e bactérias. A humanidade transcendeu sua animalidade principalmente na esfera espiritual- conhecimento, estética e inteligência.

 Tudo dito acima não significa que a humanidade esteja inteiramente protegida contra desastres e mesmo extinção. É desnecessário lembrar os malefícios advindos de um crescimento populacional descontrolado e da conseqüente espoliação do ambiente. Todavia, se a humanidade tornar-se extinta será o primeiro caso de uma espécie cometendo suicídio. Todas as extinções ocorridas na história evolutiva foram de espécies incapazes de se auto-ajudarem, em primeiro lugar porque não tiveram consciência das ameaças potenciais e deste modo não puderam evitá-las.  O homem é capaz de prever os perigos pelo menos em seu futuro imediato. Por isso pode e espero que tome medidas para evitá-los.

Sumário conclusivo

Exceto em nível humano, a evolução é um processo mecânico que age cegamente. Ela não planeja para o futuro, concebe propósitos ou batalha para realizá-los.  Como é possível um processo que transcende a si próprio ser despropositado? Como é possível um agente impessoal dar origem a pessoas que têm autoconsciência e consciência sobre a morte. De onde vem a semelhança entre a evolução biológica e a criatividade humana?

Várias soluções foram propostas.  Determinismo rígido e puro acaso são opostos polares. O famoso dictum de Laplace que para um intelecto “suficiente poderoso” nada é incerto; tanto o futuro como o passado são igualmente “visíveis a seus olhos”. Se fosse, toda a evolução teria sido desde o início da vida predestinada em seus ínfimos detalhes. A evolução é meramente um descortinar lento e tedioso do que foi preordenado a aparecer em seqüências destinadas a se suceder em uma ordem rígida por todos os tempos. O fato universal da adaptabilidade dos seres vivos a seus ambientes torna-se um enigma insolúvel. A um observador humano a futilidade escalonada da evolução predeterminada não sugere uma divina providência, mas está mais próximo do que Dostoievsky chamou de um “teatro de variedades do diabo”. Acaso para alguns significa acausalidade . Para Nagel (1961) é algo que acontece na “intersecção de duas séries causais independentes”. Seja o que for, a adaptabilidade orgânica é inexplicável. Uma espetacular seqüência longa de acasos milagrosos pode ser apenas feita por um milagreiro. Os opostos polares evolução por acaso e por predestinação estão em última análise em convergência mútua.

Mutação, recombinação sexual e seleção natural estão ligadas em um sistema que torna a evolução um processo criativo. É preciso cautela com modelos que vêem seleção natural como uma peneira que meramente separa mutações casuais e recombinações em “sucesso” e “sem sucesso”. Mais do que isso a seleção natural é um processo cibernético que canaliza o fluxo de informações vindo do ambiente para o pool gênico. Por outro lado, supor que toda a evolução é ordenada pelo ambiente também é uma super-simplificação.  Há três modos de adaptação ao ambiente em uma dada região geográfica. Em uma perspectiva histórica o ambiente e os organismos que o habitam podem ser vistos como um ecossistema em evolução. Diversas invenções biológicas possibilitam que diferentes organismos com modos de vida distintos explorem o ambiente de maneiras diferentes. É nesse aspecto que evolução se assemelha à criação artística. Sua verdadeira obra prima é o homem.

Não havia evolução biológica antes que a vida aparecesse pelo menos em um planeta no universo. A evolução do homem começou apenas após o surgimento de um ser capaz de elaborar rudimentos de pensamento simbólico e de autoconsciência.  Não vejo vantagem qualquer em supor que alguns rudimentos tênues de vida, sensação, mente e autoconsciência fazem parte de toda matéria. A vida surgiu da matéria inanimada e a mente de vida sem autoconsciência. A evolução tem-se mostrado capaz de produzir novidades radicais. Dizer que a potencialidade de vida e mente estava presente antes de seu aparecimento é trivial – isso apenas significa que de fato surgiram. Toda evolução – inorgânica, orgânica e humana- originou-se a partir de leis construídas na “fábrica” do universo. Essa afirmação não implica em uma crença disfarçada em predestinação. É importante entender que as potencialidades da evolução são muito mais numerosas que suas realizações. Assim, em nível biológico, a recombinação gênica é potencialmente capaz de engendrar padrões gênicos amplamente mais numerosos que todas as partículas subatômicas em todo o universo. Quais são as potencialidades da evolução que não foram realizadas? Provavelmente seria inútil especular a respeito.

03.10.10

Uma tradução de Dobhzanski - Parte 2


Sérvio Pontes Ribeiro

 

Rogério Parentoni mais uma vez nos oferta uma pérola. Desta vez a tradução do clássico:

 

Dobhzansky, T. 1974. Chance and Creativity in Evolution. Pp. 307-338, IN:  Ayala, F.J & Dobhzansky, T. Studies in the Philosophy of Biology. The Macmillan Press, London.

 

O mesmo segue abaixo publicado em três dias, em 3 partes. Boa leitura.

 

 

PARTE 2 - Recombinação gênica

Recombinação gênica também é uma fonte variabilidade que vem em segundo lugar atrás da mutação. Seu significado freqüentemente é subestimado, principalmente por pesquisadores que estudam organismos que se reproduzem assexuadamente e procariotos haplóides. Indivíduos destes tipos de organismos são provenientes de um mesmo clone e têm o mesmo genótipo. Uma mutação que produz normalmente alteração em um único gene dá origem a um novo clone distinto do ancestral e por isso a evolução parece ser apenas uma disputa entre tais clones. Adicionalmente recombinação gênica ocorre de tempos e tempos, mesmo em procariotos, devido aos processos de transformação, transdução, parasexualidade e sexualidade completa.

Em diplóides sexuais um grande número de genótipos surge em cada geração por meio da segregação mendeliana e recombinação. Um indivíduo heterozigoto para n genes tem a potencialidade de produzir 2n diferentes tipos de gametas; parentais heterozigotos para n genes produzem potencialmente 3 n  genótipos na progênie. E parentais heterozigotos para n genes diferentes produzem 4 n  genótipos. Devido à ocorrência de ligações, nem todos esses genótipos tornam-se realizados. Contudo, com n em centenas e milhares, dois indivíduos em populações de espécies sexualmente reprodutivas têm uma baixa probabilidade de serem idênticos. Para o homem, provavelmente um mesmo genótipo não estará representado em mais de um indivíduo, exceto em gêmeos idênticos e outros nascimentos múltiplos. O mesmo é esperado para os demais organismos que se reproduzem sexuadamente.

A singularidade genética de indivíduos poderia ser interessante, porém no contexto evolutivo um fato não destacadamente importante, se os genes atuassem autonomamente durante o desenvolvimento individual. O desenvolvimento, todavia, não é o resultado da adição de “caracteres unitários” gerados independentemente por diferentes genes. Embora estivesse em voga entre os geneticistas mais antigos, a idéia de “caractere unitário” tem agora poucos seguidores explícitos, com exceção na forma do postulado “ um gene-uma cadeia polipeptídica na proteína”.  Redes de relações mais ou menos complexas intervêm entre os genes nas células sexuais e as características dos indivíduos adultos. Efeitos gênicos interagem, mas no atual estado de nosso conhecimento os resultados destas interações são dificilmente previsíveis. Um gene A que é benéfico a um organismo quando está combinado a um gene B1, pode ser inútil ou prejudicial em combinações com os variantes B2 ou B3. O estado de ser adaptado e outras propriedades dos portadores de um dado genótipo são os produtos emergentes das chamadas interações epistáticas dos genes em sua constelação específica. Não há significado esotérico algum no termo “emergência”. A imprevisibilidade e indeterminação não são manifestações de algum princípio “casual” inerente à matéria viva, eles são uma medida de nossa ignorância. Mas isto não torna os fenômenos subjacentes a eles desprovidos de um significado importante.

O desempenho mais óbvio da recombinação é o de facilitar a organização do arranjo conjunto de mutações favoráveis, que surgiram independentemente em outros indivíduos, em indivíduos de outras gerações. Isto não é pouco significativo para mutações que são benéficas em si mesmas; a recombinação tem maior importância ainda quando mutações neutras e deletérias tornam-se em si mesmas vantajosas por meio de efeito de interações epistáticas.  Populações de organismos diplóides com fecundação cruzada são portadoras de numerosas variantes genéticas; novos padrões de arranjos gênicos surgem freqüentemente em indivíduos diferentes: o número total de tais padrões quase equivale ao número de indivíduos que são produzidos. Ao invés de clones assexuados que competem entre si, o que temos é um imenso repertório de genótipos individuais. Ao invés de trabalhar com um vasto número de variantes genéticas, a seleção natural trabalha com um número ilimitado de combinações entre elas.

O processo sexual tem tanta eficiência para gerar novas combinações de genes quanto em rompê-las. Crianças não herdam os genótipos de seus pais, mas sim várias constelações de genes parentais, meio a meio. Quais constelações que herdarão é questão de acaso. Nem as combinações melhores e mais favoráveis, nem as piores e adaptativamente menos favoráveis, têm garantia de surgirem. Simplesmente porque mesmo as espécies mais fecundas produzem número de proles que são apenas uma diminuta fração do potencial de possíveis recombinações. Caso o seja, qual o benefício que a formação de um padrão gênico superlativo em um indivíduo traria para a espécie? A resposta é a de que a incidência dos componentes de tal recombinação torna-se aumentada no pool gênico da população e, deste modo, aumenta a probabilidade de surgir padrões gênicos similares, mas realmente nunca idênticos.

A formação de cada genótipo individual em organismos com reprodução sexuada é um evento único. Considerando-se que em cada geração uma população mendeliana é um conjunto de indivíduos singulares, tal população também o é. Evolução é uma sucessão de configurações populacionais singulares. Quando o dado evolutivo é lançado, quem o lança é a seleção natural.

Seleção natural e ambiente

A limitação de espaço impede uma revisão detalhada sobre história da teoria de seleção natural e de sua situação atual. Apenas os aspectos da teoria mais relevantes com relação ao tema desenvolvido serão abordados. Antes de tudo, deve ser ressaltado que seleção natural estabelece restrição sobre o acaso e faz com que a evolução seja direcional. Normalmente e não invariavelmente, a seleção aumenta o “estado de ser adaptado” de uma população a seu ambiente. Ela é responsável pela teleologia interna tão notavelmente aparente nos seres vivos. A confusão estabelecida pela mutação e recombinação é ajeitada e canalizada em direção ao “estado de ser adaptado”. Esse fato não torna a evolução ortogenética, porque a seleção natural depende do ambiente e o ambiente nem sempre muda em uma direção constante. Apenas se o ambiente se modificasse direcionalmente ou pelo menos permanecesse razoavelmente constante durante períodos de tempo prolongados, a seleção poderia ser ortoseleção. Caso ocorra uma reversão nas condições ambientais (por exemplo, o clima tornar-se cada vez mais frio e novamente tornar-se quente) a direção da seleção pode também ser revertida.

A seleção natural estabelece uma ligação entre o pool gênico de uma espécie e o ambiente. Ela pode ser comparada a um servomecanismo em um sistema cibernético constituído pela espécie e seu ambiente. De uma forma algo metafórica, pode ser dito que a informação acerca dos estados do ambiente é passada e armazenada no pool gênico como um todo e em genes específicos. O ambiente não “ordena” as mudanças que ocorrem nos genes de seus portadores. Nossa concepção atual é a de que a evolução não é puramente ectogênese imposta pelo ambiente e nem as mudanças evolutivas são determinadas a partir do “interior” do organismo. As relações entre evolução e ambiente são mais sutis. Talvez elas possam ser mais bem descritas por meio da frase de Toynbee “desafio e resposta” que foi utilizada por este historiador para explicar a gênese da civilização humana e sua história subseqüente.

A complexidade da situação, todavia, é tão avassaladora que não podemos prever em casos concretos se ou não um desafio estabelecido pelo ambiente resultará em uma resposta evolutiva adaptativa. Uma resposta específica não ocorrerá caso não haja disponibilidade de material genético adequado. Ninguém deve, por exemplo, esperar que a espécie humana evolua uma raça com um par de asas e nem que alguém possa viver na lua sem trajes espaciais. A resposta evolutiva pode ser tão lenta que não impedirá a extinção de uma espécie particular. Esta é provavelmente a causa mais comum de extinção de espécies na história da Terra. Finalmente, uma resposta adaptativa coerente pode ser dada de várias maneiras distintas. Considere por exemplo a situação de animais submetidos à escassez de alimento durante o inverno em países de clima frio. O problema adaptativo poderá ser solucionado por meio da armazenagem de alimento ou de hibernação. Reconsideraremos abaixo esta variedade de respostas adaptativas. O que deve ser ressaltado é que não há ainda uma teoria que torne a evolução previsível. Aqueles que consideram previsibilidade como uma característica essencial de uma teoria científica podem justamente considerar que a teoria da evolução seja não científica.

Todavia há um mal-entendido sobre seleção natural que pode ser claramente reconhecido. Muitos críticos da teoria de evolução moderna estão insatisfeitos com a teoria por acreditar que seleção natural seja um fator aleatório na evolução. O oposto é verdadeiro – a seleção natural é um fator não aleatório da evolução. O acaso predomina nos processos de mutação e recombinação e não no sentido limitado com foi exposto acima. Ao contrário, a seleção como regra é dirigida em direção da manutenção da aptidão darwiniana. Aptidão darwiniana é aptidão reprodutiva. Ela é quantificável como a taxa de transmissão para a próxima geração dos componentes de um dado genótipo em relação aos demais genótipos presentes na mesma população. Ela é uma função da viabilidade, fecundidade, velocidade de desenvolvimento, maturidade sexual precoce ou tardia, proficiência sexual e outros fatores.

Como regra geral a aptidão darwiniana é positivamente correlacionada à adaptabilidade dos portadores de um genótipo no mesmo ambiente. Entretanto, deve–se ressaltar que a aptidão darwiniana é uma medida relativa (isto é relativa aos demais genótipos), mas adaptabilidade em princípio pode ser medida em termos absolutos, muito embora ainda não haja técnicas satisfatórias para fazê-lo. Algumas vezes, no entanto, aptidão darwiniana e adaptabilidade divergem entre si. Em Drosophila, camundongo e provavelmente muitos outros organismos há variantes genéticas que subvertem o processo de formação da célula germinativa de tal forma que são transmitidas à prole em maior proporção do que suas alternativas. Portadores de tais variantes têm por definição uma maior aptidão darwiniana que os não portadores e, além disso, tais variantes podem ser deletérias ou até mesmo letais nos homozigotos. Tais fatos não são surpreendentes nos processos de seleção natural. Por outro lado é surpreendente que sejam raros, pois seleção natural é mais um processo “cego e automático” do que “intencional”.

Outra fonte de mal entendido de que seleção natural seja ao acaso é a de que ela opera por meio de probabilidades mais do que “tudo ou nada”. Situações nas quais uma variante genética é totalmente letal em um ambiente, enquanto sua alternativa é letal em outro, são raras como um todo. Um exemplo disso são os mutantes resistentes à estreptomicina em algumas bactérias, as quais também são dependentes da estreptomicina. Quando expostas a uma dosagem apropriada de estreptomicina todos indivíduos normais (sensíveis à estreptomicina) são eliminados, apenas os mutantes sobrevivem. Mutantes resistentes e dependentes morrem em um meio desprovido de estreptomicina, sobrevivendo apenas os mutantes que reverteram para a condição estreptomicina-independentes.

Em maior freqüência, seleção trabalha com variantes genéticas algumas das quais têm alta probabilidade de sobreviver em certos ambientes que outras variantes, que produzem um grande número de descendentes ou que tem maturidade sexual precoce, ou mostram um maior direcionamento sexual ou cuidam melhor da prole. A aptidão darwiniana é um resultado conjunto de todos estes fatores. Pode acontecer que a seleção natural promova a fixação de variantes genéticas com algumas características desvantajosas, mas que são sobrecompensadas por outras características vantajosas. Isto tem sido mal interpretado como uma mudança ortogenética vinda a partir de “dentro” do organismo e que se mantém como em desafio à seleção natural. Um exemplo impressionante, mas especulativo, é o do alce irlandês: um animal extinto que tinha galhadas enormes e largas que foram aumentando mais e mais em sucessivas gerações até a extinção da espécie. A espécie se extinguiu porque as galhadas eram muito pesadas para locomover e, se foi realmente isso, como a seleção natural “permitiu” que acontecesse? Uma alternativa razoável é a de que indivíduos com galhadas relativamente maiores tiveram maior sucesso reprodutivo por terem melhor desempenho na luta por acasalamentos, assegurado desse modo uma maior proporção de acasalamentos que os rivais com galhadas menores. Esta vantagem pode ter sobrecompensado o incomodo de carregar tal ornamento desajeitado, até que o ambiente tenha se tornado mais hostil e causado a extinção da espécie.

A seleção natural atua como uma peneira?

A seleção natural é um processo impessoal e sem um propósito definido que no entanto conduz como uma regra a teleologia interna dos organismos.  É perfeitamente correto ressaltar seu caráter mecânico, automático e mesmo assim essa constatação pode ser ainda mal interpretada. Um dos exageros é o de considerar seleção como uma mera peneira ou meio de triagem de variantes genéticas inalteráveis deletérias ou úteis que foram geradas por mutações. O processo seletivo poderia atuar como uma peneira que retêm os raros mutantes favoráveis e deixa o resto ser descartado por meio de “morte genética”. Esta imagem da seleção natural se ajusta a certas situações, especialmente se considerramos os micro organismos e particularmente aqueles que trabalham com tais organismos. O exemplo da resistência antibiótico em bactérias pode ser considerado como “modelo peneira”. Porém comumente este modelo representa uma supersimplificação.

Ambos a magnitude e o sinal de alteração da aptidão darwiniana causado por um mutante podem mudar dependendo dos ambientes genéticos e externo ao organismo. A “peneira” da seleção deve portanto funcionar como uma aparato extremamente sofisticado: uma variante genética é retida ou passa pela peneira não devido a suas próprias propriedades mas também devido às propriedades de das demais variantes expostas ao mesmo processo de “peneiramento”. Dito de outra forma, a aptidão darwiniana não é uma propriedade intrínseca  de uma variante genética surgida por meio de uma mutação, mas sim um produto emergente de suas interações com o ambiente e o restante do sistema genotípico. O “modelo peneira” é assim patentemente equivocado.

Visto por outro ângulo, as propriedades interativas do sistema genético fazem aumentar consideravelmente a variedade de materiais genéticos sobre o quais a seleção atua. É enorme a variedade de mutantes que surgem nos indivíduos de uma espécie, porém, a não ser que um mutante atue como um dominante letal, que é descartado pela seleção na mesma geração onde surgiu, ele deverá ser avaliado por meio da aptidão darwiniana em numerosos padrões gênicos da progênie. Como salientado  por Wrigth(1932), as combinações potenciais possíveis de genes são amplamente mais numerosas que as partículas subatômicas do universo estimadas pelos físicos. O número de combinações gênicas que se realizam são quase tão numerosas quanto o são o número total de indivíduos nascidos.

Nessa altura torna-se apropriado salientar que alguns mutantes e combinações gênicas são adaptativamente neutras. Elas nem reduzem ou aumentam a aptidão de seus portadores comparado às demais variantes do pool gênico de certa população. A “peneira” da seleção os ignora totalmente, eles meramente oscilam ou derivam no pool gênico. Há opiniões amplamente divergentes sobre a magnitude de prevalência de variantes neutras. Adeptos da chamada “evolução não darwiniana” são enfáticos ao afirmar que a maioria das mutações em nível molecular é neutra, ao passo que os biólogos os quais eles designam “panselecionistas” consideram a ocorrência de mutações neutras excepcional. Este é um problema não resolvido da teoria da evolução, que não será discutido aqui em detalhes. Duas considerações devem ser postas a fim de esclarecimento. O rótulo “não darwiniano” é inadequado, pois há várias teorias “não darwinianas” (e.g. lamarckeana) precedentes a essa designação. Evolução por percurso aleatório é uma designação mais apropriada. Segundo, a dicotomia neutro versus não neutro é sem sentido: variantes que são neutras hoje podem não ter sido anteriormente, como podem também não ser no futuro. Esta consideração é relevante particularmente se aplicada ao homem, devido às mudanças radicais em seu ambiente durante sua evolução. Deste modo, genes que conferiram resistência a muitas infecções e outras injúrias que nossos antecessores sofreram podem agora ser vestígios evolutivos sem significado adaptativo.

Seleção natural: censora ou engenheira?

O modelo da peneira e outros modelos de seleção natural similares enfatizam sua função destrutiva. Como se fosse um censor, a seleção deletaria o que é adaptativamente inadequado e deixaria passar o restante. Este modelo representa apenas um dos tipos de seleção natural que é o de seleção normalizadora.  Nesse tipo a seleção “retira” absolutamente do pool gênico as variantes genéticas deletérias, ou pelo menos reduz suas freqüências a um mínimo irreduzível. A seleção normalizadora já havia sido reconhecida por alguns antecessores de Darwin, todavia não sob esse nome. Versões de seleção balanceadora (heterótica, diversificadora, dependente de freqüência) e da seleção direcional atuam como se fosse engenheiros e não censores. O aspecto mais interessante de suas ações é o que elas constroem, mais do que destroem. O modelo “engenheiro” de seleção pode parecer inaceitável para certas pessoas. Nenhum tipo de seleção pode atuar como se houvesse um planejamento preconcebido. Simplesmente porque ela é incapaz de prever a situação futura tanto do organismo quanto do ambiente. Além disso, ela deve ser ressaltada porque o fato de que seleção não faz algo mais do que apenas permitir que mutantes benéficos raros reproduzam não é percebido por muitos biólogos e filósofos. Assuma que ter pele escura é adaptativo em seres humanos que vivem em países muito expostos á luz solar e que a pele clara é adaptativa em países onde a luminosidade solar é escassa. A diferença entre pele escura e clara é controlada pelo menos por 4 genes, provavelmente mais numerosos, de efeitos aditivos- cada um deles adiciona ou subtrai uma quantidade relativamente pequena do pigmento. A cor de pele é variável e genes que determinam cor da pele são dispersos por provavelmente todas as populações humanas. Como é possível que ocorresse uma mudança evolutiva de pigmentação escura para clara e o reverso? Variantes gênicas que aumentam a pigmentação se acumulariam em habitantes de países ensolarados e aqueles que a diminuem em países onde a luminosidade é escassa. Essa ação composta da seleção obviamente envolverá redução em freqüência ou até mesmo a eliminação de certas variantes gênicas. Todavia, a mesma magnitude de pigmentação pode ser obtida por meio da seleção de genes diferentes em populações distintas; o que é preservado é mais significativo do que é eliminado. Raças que tenham magnitude igual de pigmentação podem ter diferentes genes para pigmento. Isto é apenas conjectura se considerarmos nossa espécie, porém bem estabelecida para outros animais. Talvez o caso mais elegante seja o da mariposa Triphaena comes descoberto por E.B Ford: duas raças desse lepidóptero embora sejam geneticamente bem diferentes são indistinguíveis na aparência. A similaridade entre elas deve ter sido obviamente obtida por diferentes meios genéticos. O aspecto “engenheiro” da seleção natural é talvez mais eloqüentemente manifesto por meio da convergência evolutiva. Exemplos deste fenômeno fascinaram biólogos desde os tempos pré-evolutivos, quando sua origem não podia ainda ser entendida. Por exemplo, considere baleias e golfinhos que são mamíferos e os peixes. A forma do corpo e o modo de locomoção são mais semelhantes entre eles do que a mamíferos terrestres. Ancestrais muito remotos de todos os mamíferos foram peixes, embora não idênticos aos peixes atuais. Ancestrais muito menos remotos das baleias e golfinhos, todavia, foram mamíferos terrestres e não animais parecidos a peixes e se tornaram semelhantes a peixes secundariamente quando de seu retorno à vida aquática. Corpo e locomoção semelhantes a peixes são adaptativamente superiores a quaisquer outras estruturas de mamíferos que permitem locomover na água. A seleção natural promoveu o desenvolvimento de atributos semelhantes a peixes nos ancestrais de baleias e golfinhos. Entretanto seria ingênuo imaginar que corpo semelhante a peixe apareceu em um belo dia como um mutante benfazejo. Não sabemos quantos genes tiveram que mudar uma, várias ou muitas vezes durante a descendência de baleias e golfinhos a partir de seus ancestrais terrestres. Certamente foram milhares ou milhões de mudanças gênicas. A transição ocorreu de forma gradual. Um mamífero terrestre, como por exemplo, a preguiça, pode nadar ocasionalmente; castores e lontras passam muito do seu tempo na água, mas eles não se parecem a peixes; focas e peixe-boi são muito mais parecidos, mas baleias e golfinhos têm que ser observados detalhadamente para serem reconhecidos como mamíferos.

 Não estou sugerindo que os ancestrais de baleias tenham sido lontras e focas. O ponto importante é o de que suas características semelhantes a peixes foram gradualmente construídas pela seleção a partir de variantes genéticas e de suas recombinações, algumas das quais surgindo por mutações, talvez também na ancestralidade humana, mas não foram usadas pela seleção como materiais para a construção de padrões gênicos adaptativos. Isso não quer dizer que focas e lontras se tornarão necessariamente golfinhos ou semelhantes a baleias com o passar de milhões de anos de transcurso de sua evolução. Também não deve ser pensado que baleias e golfinhos  sejam 100% adaptados a viver na água ao passo que lontras e e focas sejam 50 ou 90% (afirmação ingênua como a anterior foi feita por um pesquisador em uma discussão sobre evolução de plantas).

Podemos comparar razoavelmente entre si a adaptabilidade de raças de uma espécie ou espécies de um gênero tendo em vista que elas explorariam nichos adaptativos similares ou sobrepostos ou competiriam pelos mesmos tipos de recursos. Dessa forma, a adaptabilidade de Drosophila melanogaster como decompositora em habitats criados pelo homem é normalmente muito maior que a de D. pseudoobscura ao passo que em habitats naturais, no oeste dos EUA, o inverso é verdadeiro. Entretanto, é sem significado querer supor que as Drosophila sejam mais ou menos adaptadas que um gafanhoto ou camundongo; seus modos de vida são tão distintos que só por acaso entrariam em contato entre si. Até mesmo espécies raras e relictuais podem ser muito bem adaptadas a seus nichos ecológicos. Sua raridade pode ser resultado de que seus nichos ecológicos sejam muito restritivos, como ocorre às Drosophila cujas larvas só se desenvolvem em caranguejos terrestres, como já mencionado.

Castores e lontras gastam muito mais tempo em atividades terrestres que em atividades aquáticas; focas saem da água com freqüência, ao passo que golfinhos e baleias nunca o fazem. Afirmar que castores e lontras possam não ter “avançado” muito evolutivamente como os golfinhos e baleias poderia sugerir sutilmente crença em ortogênese, mas isso seria supérfluo. Mesmo considerando-se a possibilidade de algum tipo de ortoseleção tenha ocorrido na descendência de golfinhos e baleias a partir de seus ancestrais terrestres. Estes se tornaram cada vez mais parecidos a peixes e especializados a viver na água. Seria também sem sentido considerar se eles foram para a água antes de começar a mudar suas formas corporais e extremidades em direção a peixes ou o contrário. Obviamente deve ter havido uma retroalimentação entre a estrutura corporal e o modo de vida que adotaram.

A afirmação que o processo necessitava um suprimento de mutações “casuais” é verdadeira, mas trivial. O que é muito mais interessante é que essas variantes genéticas não foram simplesmente retidas em uma “peneira”, mas foram gradualmente integrando e se organizando em padrões adaptativamente coerentes durante milhões de anos e gerações de respostas a desafios ambientais. Nesta perspectiva temporal, a ocorrência do processo não se deve ser atribuída ao jogo de azar, mas muito mais do que seria admitir que o Empire State Building tivesse sido originário da aglomeração ao acaso de mármore ou concreto. O que é fundamental nestes casos é que o processo de construção logrou sucesso. O significado, a teleologia interna, é imposto pela seleção natural, um engenheiro cego e mudo, ao processo evolutivo. O “significado” em termos de criaturas vivas, não é apenas simples, mas básico: ele significa vida em vez de morte.

Oportunismo da evolução

É auto-evidente o fato de que qualquer espécie vivente, pelo menos qualquer espécie que não esteja à beira da extinção, tenha um conjunto de soluções para certos problemas ecológicos ou biológicos básicos. Ela deve se alimentar para repor a energia despendida; ter um local para viver e um modo de reprodução e, assim, perpetuar seus genes em sucessivas gerações. Adaptabilidade é o nome que se dá ao fato de se ter um conjunto de soluções válidas. Todas as espécies viventes são adaptadas a seus ambientes. Se não o fossem não estariam vivendo. Seria o conceito de adaptabilidade meramente tautológico? Nem tanto - a adaptabilidade pode ser maior ou menor, mais ampla ou mais especializada, mas flexível ou rígida.

Todas ou quase todas as espécies viventes alcançaram pelo menos níveis toleráveis de adaptabilidade (menos as que estão à beira da extinção). Por que a evolução não para? Ao contrário a evolução continua promovendo novas soluções para os mesmos problemas biológicos primordiais. Todavia, não há uma lei da natureza decretando que tudo deva evoluir todo o tempo. Os chamados “fósseis vivos” são espécies viventes que também foram registradas como fósseis em estratos geológicos de idades mais ou menos remotas. Deste modo, ossos de gambás do Cretáceo são semelhantes aos de espécies atuais; acreditava-se que celecantos teriam se extinguido no Cretáceo até a descoberta de uma Latimeria no oceano índico “externo” à África do Sul; caranguejos-ferradura (Limulus) não diferem muito dos que viveram cerca de 200 milhões de anos; o Brachiopoda Lingula mudou muito pouco  de  450 milhões anos para cá.

Não sabemos as causas pelas quais os fósseis vivos pararam de evoluir. Tem sido frequentemente pressuposto que a fonte de mudanças evolutivas tenha “secado” por causa da falta de ocorrência de mutações. Mas isto quase com certeza é errado. Selander determinou a variabilidade genética do caranguejo-ferradura a qual não é muito mais baixa que em Drosophila que evoluem rapidamente. Taxas evolutivas não são primariamente dependentes de taxas de mutação. Outros pesquisadores imaginaram que evolução poderia parar quando 100% de adaptabilidade fosse atingida. Isto faz muito menos sentido. Claro que não é óbvio que gambás, ou caranguejos-ferradura tenham adaptabilidade mais perfeita que camundongos, gatos ou lagostas. Uma suposição melhor é a de que fósseis vivos ocupam nichos ecológicos que foram se tornando restritos, mas permaneceram com suas propriedades não muito alteradas por um tempo extenso.

Evolução ocorre quando há desafios e oportunidades para evoluir. Os desafios mais primários são os que procedem a partir do ambiente. Quando o clima se torna mais quente ou frio a seleção poderá favorecer ajustes fisiológicos que tornam o clima alterado tolerável. Uma mudança climática pode, no entanto, causar outras mudanças que apenas a temperatura. Pode mudar o ecossistema inteiro. Adaptabilidade a fatores bióticos são mais sutis, porém em longo prazo mais importantes que os fatores físicos. Organismos que vivem em certo habitat são interelacionados e interdependentes. Uma espécie animal ou vegetal poderá tornar-se mais ou menos freqüente ou seu habitat ser invadido por uma espécie que até o momento da invasão não vivia lá. O recém-chegado pode ser um novo tipo de presa, predador, parasito ou competidor por alimento ou espaço. Sua presença pode ser um desafio para os que vivem nesse habitat os quais, obrigados a responder por meio de mudanças adaptativas, podem tornar-se raros ou se extinguir.

O processo de adaptação pode também ocorrer por meio de alternativos. MacArthur e Wilson distinguiram seleção “r” e “K”. A primeira favorece taxas reprodutivas aumentadas e a outra maior eficiência na conversão de alimento e outros recursos em prole. Por exemplo, “em locais onde o clima é rigoroso e sazonal, nos quais os sobreviventes ao inverno iniciam a nova população da primavera, na presença de oferta de folhagem e alimento, espera-se que a seleção “r” favoreça taxas reprodutivas elevadas. Onde o clima é uniformemente benigno, seleção “K” e maior eficiência serão os resultados”. Entre outras coisas a seleção “r” pode favorecer tempos de geração curtos, utilização de maior quantidade de alimentos e mobilidade ampliada de jovens ou dispersão de sementes. Por ação da seleção “K” a preservação de indivíduos ocorre por meio de mecanismos fisiológicos que os “protejam” contra a aspereza ambiental. Um número menor de prole bem dotada é o bastante para a perpetuação da espécie. As seleções “r” e “K” não são obviamente mutuamente exclusivas e podem ocorrer em conjunto. Todavia, elas poderão ser responsáveis pela evolução divergente de descendentes da mesma população ou espécie ancestral.

De modo mais geral, a diversidade orgânica pode ser compreendida como uma resposta da matéria viva à diversidade ambiental física e biótica. Considerando-se esse fato, os diversos milhões de espécies na Terra ainda podem parecer excessivamente exuberantes. Qualquer um poderá ficar fascinado não apenas por causa dessa prodigiosa diversidade, mas também pelas muitas formas de vida bizarras. Por que, por exemplo, deve existir pelo menos duas espécies de Drosophila especializadas a viver exclusivamente em certas partes do corpo de caranguejos terrestres em ilhas caribenhas? Alguém pode ser tentado a pensar que o “lugar ao sol” ocupado por tais espécies seja tão exíguo que não compensaria o esforço de se tornar adaptado para viver naquelas condições. Mas isso além de ingênuo, seria antropomórfico. A seleção natural não “sabe” se os seus produtos herdarão a Terra ou apenas uma porção minúscula dela. Ela é totalmente oportunista. Se houver um nicho vago, apesar de estreito, e  se há disponibilidade de variação genética que permita ocupá-lo, aparecerá um sistema genético que o preencherá.

Preadaptação

Seleção natural não é onipotente. Uma das coisas que ela é incapaz de prever são as necessidades futuras de uma espécie ou população. Além disso, algumas observações parecem sugerir que na história evolutiva certos grupos de organismos estavam pré-adaptados a condições que surgiram posteriormente ao aparecimento dessas ´pré-adaptações. Um exemplo simples e significativo é o do desenvolvimento de cepas de diversas espécies de insetos resistentes ao DDT e outros inseticidas potentes. A resistência é devida a alelos mutantes de certos genes nestas espécies; as mutações não foram induzidas por meio do contato com os inseticidas; a exposição aos inseticidas simplesmente eliminou os não mutantes e os mutantes sobreviveram. O DDT só foi descoberto há apenas algumas décadas. Por que os genes que deram origem aos mutantes resistentes estavam presentes nos insetos antes dessa descoberta?

É ingênuo pensar que há genes “para” resistência a inseticidas. Todavia, genes produzem enzimas que catalisam reações metabólicas no inseto “normal” isto é, não resistente. Acontece que a molécula do DDT tem uma estrutura química que atua sobre algumas dessas enzimas. A mutação responsável pela resistência pode produzir uma variante enzimática particularmente eficiente na reação que detoxifica o inseticida ou pode aumentar a quantidade da enzima. A versatilidade bioquímica em insetos é tamanha que se torna difícil desenvolver um inseticida ao qual nenhuma resistência possa ser desenvolvida. Porém isso não significa que insetos foram equipados com uma bateria de genes “premonitórios” sobre quaisquer inseticidas que possam ser desenvolvidos. Os genes executam funções fisiológicas muito distintas. As quais eram desconhecidas antes que o problema prático da resistência induziu os fisiologistas a estudá-lo.

As pré-adaptações presentes na evolução humana têm confundido alguns biólogos, levando-os a acreditar que a evolução possa ser guiada por meio de forças ocultas. Por exemplo, Alfred Russel Wallace, co-descobridor com Darwin da teoria de evolução por seleção natural, maravilhou-se sobre como é possível que “selvagens” “têm cérebros pouco inferiores que a média do homem de nossa sociedade culta” e concluiu que o homem tem “ algo que não foi derivado de seus animais antecessores, alguma coisa que pode ser melhor referido como sendo uma essência espiritual da natureza”. Wallace duvidava que a seleção pudesse desenvolver algumas capacidades humanas, tal qual a capacidade de criar e aprender matemática avançada. Um autor atual também de forma semelhante  questionou a validade da teoria de evolução por mutação-seleção. Outro autor pensou que “um cérebro um pouco melhor que o de um gorila seria o bastante para o homem”. Todas as dúvidas semelhantes a estas aparecem a partir de afirmações implícitas de que “caracteres” (ou genes “para” tais caracteres) sejam selecionados independentemente. Porém, mesmo considerando-se a escassez de evidências que dispomos, não podemos sugerir que haja um gene específico para matemática, outro para filosofia e um terceiro para poesia e assim por diante.

Embora algumas pessoas tenham mais facilidade para aprender matemática e outros para filosofia ou poesia, ou para qualquer outra coisa, todas estas capacidades são manifestações da capacidade fundamental do homem de se abstrair, pensar simbolicamente e se comunicar por meio da linguagem. Esta capacidade faz parte dos atributos diagnósticos do Homo sapiens. Embora varie individualmente ela está presente em todos integrantes não patológicos da espécie. Capacidades mentais que distinguem o homem dos demais primatas e de outros animais certamente não são atribuíveis a um único gene, mas a numerosos genes interagentes. Não há dúvidas de que as capacidades mentais humanas tenham sido altamente adaptativas. Formas de organizações sociais humanas e tecnologias que capacitaram o homem a solucionar problemas impostos pelo ambiente são produtos coletivos de cérebros humanos. De acordo com Popper e Ecces podemos dizer que todos os animais inclusive o homem vivem no Mundo I, mas a humanidade tem também os Mundos II e III (Segundo estes autores o Mundo I é o das grandezas físicas, o Mundo II é o dos estados da consciência e o Mundo III é o do conhecimento no sentido objetivo. Veja Martins, R.P. 2004. Teorias. IN: Martins, R.P. & Mari, H. Eds. Universos do Conhecimento. Editora Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, MG) Filosofia e matemática avançada podem não ter sido indispensáveis em si mesmas, pelo menos até os tempos atuais. Porém, são produtos secundários das capacidades mentais que levaram o homem a ocupar, modificar e criar seu nicho ecológico.

03.10.10

O mundo com Marina e os brasileiros


Sérvio Pontes Ribeiro

Várias trabalhos pendentes mas é preciso parar. Uma eleição Presidencial no país da maior megabiodiversidade do planeta, as maiores fronteiras agrícolas e os piores líderes no setor produtivo quanto à sustentabilidade. Um desenvolvimento à base do minério e da agro-indústria, e a chance de uma população ser o fiel da balança da sobrevivência da espécie humana na Terra. Para mim, é sério deste tanto, e se desenrolou, hoje.

 

E foi na mais profunda euforia que vi fecharem a apuração e a maior rede televisiva do país e outras abrirem online a entrevista não do primeiro, não do segundo, mas do terceiro lugar, Marina Silva, candidata do PV. Cresci amedrontado pela Ditadura militar e pala ignorância instalada na população. Nada parecia mudar. De fato, levou três vezes mais tempo para o Brasil entender a revolução pacífica e social que precisava ser feita e que Lula fez, do que para entender que esta revolução terá que ser seguida por outra, sócio-ambiental, onde toda a diferença do mundo está, literalmente, em como vamos crescer nos anos que virão.

 

Hoje, Marina teve quase 20 milhões de votos, e 19,7% do eleitorado, e é quem vai decidir, sozinha, quem será o próximo Presidente do Brasil. Demos, com uma legitimidade nunca vista, a ela, este pressuposto.  Vencemos o medo do retrocesso e não votamos para forçar a melhor opção (que certamente não é o regresso ao neoliberalismo PSDBista). Ao contrário, forçamos qualquer uma das opções a abandonar a arrogância, a soberba desenvolvimentista e negociar nossa sobrevivência e diversificação cultural, micro-econômica, e ambiental.

 

Hoje venceu a gentileza, a beleza, a serenidade humana e doce de Marina. Hoje venceu tudo que precisamos ser, e ter à nossa frente. Mais que o diálogo, a aceitação, o respeito e a decência política que todos, até Lula, foram perdendo pelo caminho.

 

E hoje venci o medo que tive quando voltei para o Brasil. Se não bastasse ser parte de uma geração perdida, com enormes falhas educacionais, científicas, tecnológicas e políticas, temia o que me rodeava. O medo de viver espremido entre a geração fracassada que perdeu para a ditadura e que se vendeu pela conformidade da proteção hipócrita da classe média, gerando o país mais injusto do mundo, por um lado. Pelo outro, pela próxima geração que eu julguei individualista e superficial, portanto, tão perdida quanto a minha! Ao menos quanto a esta, tudo indica, me enganei, ou ao menos, deixem-me crer nisto por um tempo. Talvez uma pequena faixa tenha mesmo se perdido. Porém, me parece mesmo que o paradoxal “introspectar” na internet transformou-se no prazer de se expressar com uma liberdade que as regras arcaicas da nossa sociedade provinciana nunca permitiriam. E vocês todos com menos de 30 anos se manifestam poderosos e me enchem de esperança como nunca tive na vida quanto à política deste país.

 

Hoje me comovi ainda mais do que me comovi quando Lula virou Presidente pela primeira vez. E quem tem mais que 30 anos, sabe muito bem o que isto significa. O PV, um partido global, e a Marina são ícones internacionais, e hoje demos outro recado, ao mundo. Contamos que há um Brasil se opondo a outro, e que luta junto ao resto do mundo pela Amazônia (veja que o PC do B das mudanças do código florestal, e outras forças reacionárias,  ganharam e muito em todo território amazônico e do cerrado, na busca sangrenta por não terem freios e converterem todo o resto da biodiversidade em seu velho modelo de enriquecimento elitista e irresponsável, ou de populismo vazio). Com todas dificuldades e atrasos que não acabaram, hoje contamos ao mundo que esta biodiversidade é nossa sim, e que vamos tentar sim salvar o mundo dos piores cenários possíveis, aos quais ainda estamos expostos.  Hoje, quase 20 milhões de pessoas contaram que não vai ser fácil roubar o nosso futuro.

03.10.10

Uma tradução de Dobhzansky - PARTE 1


Sérvio Pontes Ribeiro

Rogério Parentoni mais uma vez nos oferta uma pérola. Desta vez a tradução do clássico: 

Dobhzansky, T. 1974. Chance and Creativity in Evolution. Pp. 307-338, IN:  Ayala, F.J & Dobhzansky, T. Studies in the Philosophy of Biology. The Macmillan Press, London.

O mesmo segue abaixo publicado em três dias, em 3 partes. Boa leitura.

 

Em biologia estamos a construir castelos de cartas: resistem tão pouco à lábil criticalidade da adição de uma mera carta inesperada, que passamos a substituir entre si as descartadas, sob o temor que o frágil castelo rua e nós mesmos, seres biológicos imprudentes, não resistamos às fragilidades de nossas próprias concepções.

 

Dobhzansky, T. 1974. Chance and Creativity in Evolution. Pp. 307-338, IN:  Ayala, F.J & Dobhzansky, T. Studies in the Philosophy of Biology. The Macmillan Press, London

Tradução, prólogo e comentários em negrito por Rogério Parentoni, Professor-visitante, Departamento de Biologia, Centro de Ciências, Universidade Federal do Ceará, Campus do PICI, Fortaleza/CE

 

Prólogo:

Por que traduzir esse capítulo?

Apenas a menção Dobhzansky seria suficiente para expressar o que ele representou para o desenvolvimento da biologia evolutiva e o bastante para justificar esta tradução. Porém, neste caso, o ensaio de Dobhzansky sobre acaso e criatividade na evolução é mais abrangente que o livro também clássico e importante “O acaso e a necessidade” de Jacques Monod: é uma peça esclarecedora sobre detalhes importantes da evolução. Detalhes estes que proporcionarão ao leitor um panorama lúcido e coerente sobre o processo. Além disto, a maioria dos alunos de biologia no Brasil tem acesso restrito a obras sobre filosofia da biologia, em parte por serem herméticas aos que se aventurarem a lê-las desprovidos de tutores ou bagagem conceitual adequada. Também porque no Brasil apenas recentemente houve interesse manifesto, apesar de ainda tímido, de um número maior de biólogos sobre a importância da história e filosofia da biologia para contextualizar a investigação científica e torná-la intelectualmente atraente e mais consistente. Mas há outra razão: o livro foi publicado em 1974 e, por isso, talvez possa ser atualmente considerado por alguns apenas um ancião mal recostado em prateleira empoeirada de algum sebo. Aliás, este tipo de concepção, não raramente equivocado, nessa época de triunfalismo tecnológico, compromete seriamente a possibilidade de uma formação intelectual consistente. Que esta tradução possa ser bem acolhida pelos alunos de biologia e demais interessados. A capacidade rara e lúcida de Dobhzansky em dirimir dúvidas de forma simples e direta, talvez beneficiem aqueles que têm dificuldades em entender a rica e expressiva complexidade do processo evolutivo.  De minha parte tive prazer em traduzi-lo. Enfim, incitada a cada instante no transcurso da leitura e tradução deste capítulo, há uma pergunta que deve ser formulada: há algum avanço de extraordinária relevância teórica que tenha contribuído para aumentar substancialmente nosso conhecimento sobre evolução, ou ainda estamos a caminhar amparados pelos ombros dos gigantes responsáveis pela configuração do que é chamado neodarwinismo? Suspeito que a segunda alternativa seja a verdadeira.

Acaso e criatividade em evolução

Diversidade e unidade são aspectos igualmente importantes e fascinantes do mundo vivo. O vírus que causa a febre aftosa é uma esfera de 8-12 milimicra de diâmetro. A baleia azul tem 22 metros e 150 toneladas. Sequoia gigantea pode pesar mais de 6000 toneladas.  Há bactérias que se multiplicam a -230 C em poços salinos na Antártica e outras a 80-850 C em nascentes de água quente no Parque de Yellowstone. A amplitude de distribuição do puma vai do Alaska à Patagônia, portanto esse felino vive em uma variedade ampla de climas e habitats. O homem, espécie verdadeiramente cosmopolita, é capaz de criar ambientes propícios à sobrevivência e reprodução na terra e no espaço cósmico. Em contraste, algumas espécies são especialistas estritos. Larvas de Drosophila carcinophila se desenvolvem apenas em sulcos externos dos nefrídios debaixo das abas do terceiro maxilípede do caranguejo terrestre Geocarcinus ruricola nas ilhas caribenhas Mona e Montserrat. Drosophila endobranchia, espécie habitante das Ilhas Cayman, que não é tão próxima filogeneticamente a D. carcinophila, desenvolve-se nas câmaras branquiais da mesma e outra espécie de caranguejo terrestre afim.

Cerca de um milhão de espécies animais e vegetais foram descritas até 1970. (Lewinsohn e Prado 2004, www.conservation.org.br/publicacoes/.../07Lewinsohn_Prado.pdf sintetizam o que se conhece sobre a riqueza em espécies da fauna brasileira). Provavelmente uma quantidade não inferior a esta permanece a ser classificada. Há estimativas de 10 milhões de espécies (Raven, Berlin and Breedlove), mas isto é quase com certeza exagerado. Alguns grupos de organismos se diversificaram tanto que parece demasiadamente excessivo: ¾ do total de espécies animais são insetos.  Em contraste há 3700 e 8600 de espécies de mamíferos e aves respectivamente e, provavelmente, apenas um pequeno número de espécies poderá ser ainda adicionado a estes grupos. Cabe aqui uma pergunta: por que certos grupos se diversificaram de forma “demasiadamente excessiva” e outros moderamente?

Apesar disso, subjacente a essa diversidade prodigiosa, todos os seres vivos compartilham similaridades notáveis. Em quaisquer organismos a informação genética é transmitida por meio de dois grupos de substâncias relacionados – os ácidos nucléicos DNA E RNA. O código genético, pelo qual esta informação é traduzida em seqüências de aminoácidos e proteínas, também é invariante. Os mesmos 20 tipos de aminoácidos constituem proteínas de quaisquer organismos, embora proteínas diferentes contenham diferentes proporções destes 20 tipos. Uniformidades surpreendentes prevalecem no metabolismo dos mais diversos seres vivos. ATP, biotina, riboflavina, grupos heme (pigmentos orgânicos complexos de cor avermelhada que contem ferro e outros átomos aos quais o oxigênio se liga quimicamente) tiamina, piridoxina, vitaminas K e B12, e ácido fólico implementam universalmente os processos enzimáticos. Oxidação ácido-lipídica, glicólise, e o ácido cítrico (Krebs) são rotas metabólicas em animais, plantas e microorganismos.

Os “processos bioquímicos universais” acima somente têm sentido à luz da evolução. Todos os seres viventes e fósseis são originários de um único ramo comum.  Se ocorreram vários episódios de origem da vida a partir da matéria inerte, apenas os descendentes de uma única fonte primordial sobreviveram.  A “unicidade da vida” é deste modo facilmente compreendida considerando-se a origem em comum de todos os seres vivos. Apenas nesse sentido justifica-se a afirmação de Monod: “o problema evolução” foi essencialmente resolvido e a evolução agora se situa confortavelmente do lado de cá da fronteira do conhecimento”.

As abordagens histórica e causal ao estudo da evolução

A diversidade da vida e sua unidade são produtos da evolução. Esta afirmação é correta, mas distante da história completa. Duas categorias de perguntas demandam respostas: históricas e causal.  Desejamos traçar e datar a história evolutiva, a filogenia do mundo vivente. Isto agora está próximo a acontecer. Um simples exemplo é o suficiente para ilustrar esta situação: um esforço desproporcionalmente maior tem sido empregado para traçar a origem da humanidade do que a de qualquer outra espécie. Fósseis de hominídeos mais diversificados têm sido mais descobertos nos últimos 20 anos do que anteriormente. Apesar disso, ainda está longe de ser estabelecido quais espécie fósseis foram nossos ancestrais, e quais foram apenas afins colaterais. Questões históricas nem sempre têm apenas interesse teórico. Por exemplo, Coon (1962) afirmou que as demais populações humanas do homem atingiram o status evolutivo de Homo sapiens cerca de 250 mil anos mais tarde que as populações européias. Essa afirmação foi totalmente equivocada do ponto de vista das evidências disponíveis. Porém, o pior é que esta afirmação insensata foi incorporada rapidamente ao discurso racista. Os negros deveriam esperar 250.000 anos para alcançar o mesmo status dos brancos!

Comparado ao registro histórico, a análise causal do processo evolutivo é mais avançada de certas maneiras e menos de outras. A chamada teoria neodarwiniana, sintética ou darwiniana biológica é a visão atual preponderante, embora não seja aceita unanimemente. Em minha opinião ela proporciona um paradigma satisfatório para subsidiar a análise causal. Os postulados básicos da teoria são três: 1) mutações produzem a variação no material genético básico; 2) modificações evolutivas originam-se a partir desse material por meio da seleção natural; 3) em organismos sexuados o isolamento reprodutivo torna irreversível a divergência das espécies biológicas. Supondo-se que este paradigma seja aceito como válido, exceto por detalhes insignificantes, isto significaria que o problema “evolução” teria sido solucionado? Não, há ainda problemas básicos à espera de elucidação. Além disso, tais problemas têm profundas implicações filosóficas e humanistas.

Entre os oponentes do neodarwinismo, a maioria o rejeita alegando que ele atribui ao acaso um papel de destaque na evolução. É absurdo supor que um sistema de enorme complexidade, e ao mesmo tempo com propriedades requintadas de auto-manutenção em ambientes hostis, possa surgir ao acaso, ou por meio de um somatório de acasos. O poeta Auden, que é filósofo da biologia por passatempo, afirmou que milagres seriam explicações mais razoáveis.

Para Jacques Monod, ao contrário, o acaso é o cerne de sua visão evolutiva de mundo: “Acaso puro, totalmente livre, mas cego, está na base desse estupendo edifício evolutivo; esse conceito central da biologia moderna não é apenas mais um entre outras hipóteses possíveis ou concebidas. O acaso é a única hipótese concebível, a única que corretamente se coaduna aos fatos observados e testados”. O acaso reina tanto na base como no cume da evolução: “o homem sabe pelo menos que está só na imensidade insensível desse universo do qual ele emergiu apenas por acaso”. Monod não subestimou o significado disso para o homem. Ele afirmou: “Não há conceito científico qualquer, em quaisquer ciências, mas deletério ao antropocentrismo do que esse, e nenhum outro é capaz de provocar um protesto instintivo nas criaturas fortemente teleonômicas (teleonomia: Informação armazenada dentro de um ser vivo. Teleonomia envolve o conceito de alguma coisa ter um projeto e um propósito. Não-teleonomia é "falta de direção", ausência de planejamento. A teleonomia de uma coisa viva é de algum modo armazenada dentro de seus genes. Teleonomia pode usar energia e matéria para produzir maior ordem e complexidade que somos nós). Eu não creio que a teoria biológica moderna da evolução seja baseada no “acaso” tanto quanto Auden teme ou Monod acredita. O conhecido e desconhecido da situação serão aqui considerados em detalhes.

Evolução programada

Alguns biólogos acreditam que as teorias darwinianas e neodarwinianas sobre evolução atribuem ao acaso um papel indevido na evolução e, por isso, várias iniciativas para encontrar alternativas plausíveis foram tentadas. Elas têm normalmente a forma de teorias sobre ortogênese “evolução é em grande parte um desdobramento de rudimentos pré-existentes” (Berg, 1969). Teorias ortogenéticas variam muito entre si.  Algumas são claramente proto-naturalistas, ou seja evolução é impelida ou guiada por meio de forças ocultas.  Os finalistas postulam que evolução tem uma meta pré-definida, tal como a produção do homem; mudanças evolutivas seriam como um show de strip-tease, no qual um conjunto de disfarces é removido peça por peça, eventualmente revelando o homem. Por que para “revelar” o homem seria necessário existir alguns milhões de espécies biológicas, que presumivelmente nunca seriam transformadas em humanóides?

Variantes mais convictas da ortogênese fazem analogia da evolução ao desenvolvimento embrionário. O desenvolvimento de uma célula ovogênica humana transcorre por meio de uma série de estágios, a partir da fertilização, clivagem, gastrulação, formação de órgãos, nascimento, infância, adolescência, maioridade, velhice e morte. Estes estágios são pré-determinados, no sentido em que cada um segue o outro em uma ordem fixa à medida que a vida continua. Um programa de desenvolvimento está contido no núcleo das células reprodutivas; até o momento sabemos que este programa está codificado no DNA dos cromossomos, mas só estamos começando a aprender sobre como o programa ocorre. Seria possível que a vida primordial carregasse em si um programa de desenvolvimento evolutivo, que teria sido realizado apenas uma vez em uma longa série de gerações e se repetindo por incontáveis episódios, em numerosos indivíduos, em um período de tempo de 2 ou três bilhões de anos? Essa possibilidade foi defendida por Berg (1922, reimpresso em 1969).

Berg chamou sua teoria de nomogênese, ou seja evolução determinada por lei.  No entanto nem ele ou qualquer outro foram capazes de especificar sobre como essa “lei” operava.  É incompreensível que as moléculas de DNA possam potencialmente ter sido pré-ordenadas a mudar por bilhões de anos sempre etapa por etapa, em uma linha reta, por exemplo, de procariotos ao homem. Isto não é apenas incompreensível, mas sabemos que não é assim que a evolução ocorre; mutações no DNA não ocorrem em qualquer direção específica. Realmente muitas delas são letais! A similaridade entre o desenvolvimento embrionário (ontogenia) e o evolutivo (filogenético) deve ser considerada em direções opostas às que Berg e outros partidários da ortogênese propuseram. Ontogenia não vai direcionalmente a uma meta, ou seja a um corpo capaz de viver e reproduzir. Direções erradas também acontecem muitas vezes na evolução, porque elas não mantêm a vida e reprodução dos organismos nos quais surgem.

Todavia, há um sentido pelo qual a evolução pode ser chamada ortogenética, caso esse termo não seja usado de tantos modos diferentes, o que neste caso seria melhor evitá-lo.

 Tanto quanto eu sei, ninguém ainda foi capaz de propor uma definição satisfatória do que seja progresso evolutivo. Contudo, observando a evolução do mundo vivo como um todo, a partir da substância primitiva autorreprodutível a angiospermas, animais e homem, não é possível deixar de reconhecer que progresso, avanço, ascensão não tenha ocorrido. Como Barbour (1966) disse corretamente “por quase qualquer critério o homem representa um nível superior ao do lodo primitivo”. Simpson (1967) quem talvez tenha contribuído mais que qualquer outro a uma análise crítica das várias noções de progresso evolutivo, todavia, escreveu: “desenvolvimento e progresso são tão evidentes na natureza animal que estas características impressionaram profundamente os biólogos muito antes que o grande fato evolução que os produziu fosse entendido”.

Evoluções geral e particulares

É desejável que nesse ponto se faça uma distinção entre evolução geral e particular. Alguém pode enxergar evolução como um todo, ou estudar separadamente eventos evolutivos específicos. Sob a perspectiva de bilhões de anos, a evolução sem dúvidas logrou resultados que merecem o nome de progresso ou, para os alérgicos a essa palavra, algum outro nome equivalente. Porém, podemos considerar a evolução em detalhes. Desse modo, alguém perderia a visão da floresta (a progressividade da evolução geral) e teria a visão sobre as árvores (a evolução específica). Extinção é o resultado mais comum do desenvolvimento evolutivo das linhagens documentada em forma de fósseis. Morte e extinção são a antítese do progresso biológico.

Adicionalmente, em muitas linhagens encontramos o que pode ser chamado de retrogressão.  Esta é mais evidente em alguns endoparasitos. O sistema nervoso, órgãos sensoriais, trato digestivo e musculatura em vários endoparasitos tornaram-se vestigiais ou foram inteiramente perdidos. O que permanece é mais ou menos um saco contendo os órgãos reprodutivos.  Mesmo a maquinaria bioquímica pode ficar reduzida e, conseqüentemente, os parasitas podem depender dos hospedeiros para obter alguns produtos metabólicos que seus ancestrais eram capazes de produzir. Porém, pode ser observado progresso em determinadas linhagens. Simpson (1967) afirmou isto de modo admirável: “evolução não é invariavelmente seguida de progresso e nem mesmo o progresso pode ser uma característica essencial do processo. Progresso ocorre no processo, mas não é a essência evolutiva”. A emergência do homem a partir de seus ancestrais não humanos é um exemplo óbvio de progresso em uma linhagem evolutiva específica. Aos que poderiam me reprovar pelo antropocentrismo desta afirmação, posso apenas responder que esse antropocentrismo é apropriado ao senso comum.

Visto em retrospectiva, evolução como um todo tem uma direção geral, do simples para o complexo, de dependência para uma relativa independência do ambiente, para uma autonomia cada vez maior do indivíduo, para um desenvolvimento cada vez maior dos órgãos sensoriais e sistema nervoso transferindo e processando informações a respeito da situação de seu ambiente e, finalmente, uma conscientização cada vez maior. Você pode chamar esta direção progresso ou por outro nome qualquer. No entanto, deve ficar extremamente claro que o fato de a evolução mostrar essa tendência ou direção não significa que ela esteja sendo dirigida por um agente externo ou que tenha sido pré-programada. Esta distinção nem tão sutil tem sido freqüentemente ignorada. Organismos mostram teleologia interna e não externa (Ayala 1968).

O fato de haver direcionalidade em evolução foi chamado por Teilhard  de Chardin ortogênese. Obviamente ele pensava na evolução geral. Em sua visão “a partir dos estágios iniciais da evolução, a matéria viva que cobre a terra exibe a feição de um único, gigantesco organismo”. Esse “organismo gigantesco”, metafórico, exibe em seu desenvolvimento uma direção discernível chamada ambiguamente “ortogênese” por Teilhard de Chardin. Sendo um paleontólogo ele sabia muito bem que em linhagens específicas a “ortogênese” leva à extinção e não a qualquer tipo de progresso. De acordo com isto ele descrevia a evolução como um” tateamento” o que certamente significa o oposto de um desenvolvimento retilíneo. Uma espécie vivente pode ser vista como “tateando” no escuro possibilidades de sobreviver e responder adaptativamente a um ambiente cambiante. O  ato de “tatear” termina com freqüência em um beco sem saída, interrupções e extinções. Porém, ocasionalmente, este ato resulta em aperfeiçoamento e progresso. Isto para mim é uma descrição adequada e maravilhosa de seleção natural. O que Teilhard não conseguiu entender é que a seleção natural é responsável pela direção tanto da evolução geral (macroevolução) como pelo ato de “tatear” em evoluções específicas (microevolução).

Averiguar apenas que a possibilidade de que a evolução geral seja direcional não equivale a explicá-la. O fato de que há direcionalidade foi descoberto, digamos prematuramente, antes mesmo que as causas fossem sequer aventadas. Supor que o curso da evolução já estivesse programado na vida primordial foi aparentemente a solução mais simples. Porém, essa aparente simplicidade foi decepcionante e pelas mesmas razões que o preformacionismo do século 18 foi ingênuo. Esta noção teve o objetivo de “explicar” o desenvolvimento embrionário por meio da suposição que minúsculas cópias do organismo em desenvolvimento estariam presentes nas células sexuais e teriam apenas que hipertrofiar. Nem a ontogenia e a filogenia podem ser compreendidas deste modo. Se um diminuto facsimile de um organismo adulto estiver “escondido” em uma célula, onde suas progênies estarão “escondidas”? A teoria do “encapsulamento” de Bonnet reduz ao absurdo a preformação ontogenética. A noção de que o homem era de algum jeito presente de forma oculta em células procariotas ancestrais também atinge os limites do absurdo.

Preformação de toda evolução futura na vida primordial pode ser veraz apenas no senso trivial do determinismo universal de Laplace: “qualquer coisa que aconteça é provável de acontecer”. Porém, este determinismo Laplaceano não é confirmado sequer na física. Em evolução biológica, como eu tento mostrar, apenas uma fração diminuta de eventos potencialmente possíveis são realmente realizados. Nossa tarefa é a de descobrir o que permite que aconteçam. Tanto o curso como resultado da evolução não foram programados por quaisquer agentes externos. Todavia, a direcionalidade da evolução não é uma questão de acaso ou acidente. Ela é devida a leis constituídas na estrutura básica da vida. Evolução é nomogênese: não no sentido que Berg supunha que fosse. A “lei” da evolução é a seleção natural.

Mutação - acaso e suas limitações

Evolução abrange alterações do genótipo, a base hereditária, das espécies em evolução. Modificações do fenótipo, devido a mudanças ambientalmente induzidas na manifestação do genótipo, são obviamente importantes em evolução. De fato, quem sobrevive ou morre, reproduz ou permanece sem prole é apenas indiretamente condicionado pelo genótipo- o fenótipo é moldado por meio das interações entre o genótipo e o ambiente. Contudo, se não houver mudanças genotípicas, as gerações subseqüentes iniciar-se-ão a partir da mesma base anterior e, conseqüentemente, mudanças fenotípicas podem ser revertidas devido ao retorno às condições ambientais anteriores. É necessário que haja base genética para que mudanças sejam fixadas. Portanto, qualquer teoria evolutiva deve fornecer uma explicação sobre a origem das mudanças genéticas. Até agora conhecemos dois tipos de mudança genética – mutação e recombinação de material genético.

Há diversos tipos de fenômenos incluídos na mutação. O mais importante é a mutação gênica que acontece por meio da substituição, adição ou deleção de nucleotídios do DNA. Mutações “missense” alteram a seqüência de aminoácidos na proteína que foi codificada pelo gene mutante, ao passo que mutações “nonsense” interrompem a síntese das respectivas proteínas. Mutações que ocorram em genes operadores ou reguladores podem alterar o lugar, tempo ou quantidade da proteína sintetizada.  Tais mutações provavelmente são muito importantes em evolução, embora ainda não sejam bem compreendidas. Finalmente, mutações cromossômicas mudam o arranjo dos genes nos cromossomos, deletam ou duplicam blocos de genes ou cromossomos inteiros.

Independentemente de outras funções que genes possam ter, todos servem como moldes para que ocorra a síntese de suas próprias cópias. O processo de cópia é em geral notavelmente acurado, pois se não o fosse a vida não seria mantida.  Todavia, pode haver erros que resultem em mutações. As seqüências nucleotídicas nos genes têm sido comparadas a seqüências de letras e sinais ortográficos em letras, sentenças e parágrafos. Deste modo mutações são erros de cópia parecidas a erros tipográficos cometidos pelos linotipistas. Eles são eventos acidentais ou casuais. Todavia, acaso é uma palavra equivocada, em especial quando aplicada ao processo evolutivo. Um evento aleatório não é acasual e sequer uma manifestação de algum princípio de espontaneidade inerente na natureza viva. Nagel (1961) define um evento aleatório como aquele que ocorre; “na intersecção de duas séries causais independentes, ou se em um contexto de investigação uma afirmação que assegure sua ocorrência não seja derivada de qualquer outra coisa”. Mutações são consideradas de ocorrência aleatória ou espontânea  quando surgem na prole de progenitores que não foram expostos a qualquer agente indutor. A probabilidade de que ocorra pode ser aumentada por meio da exposição a raios X e outras radiações de ondas curtas, por meio de ultravioleta ou qualquer um agente químico mutagênico. As bases químicas do processo mutagênico estão sendo elucidadas com sucesso.

A palavra “mutação” é mal aplicada não só à causalidade como também aos efeitos da mutação. As mudanças que a mutação causa parece à primeira vista determinadas aleatoriamente. Veja, por exemplo, o caso dos mutantes clássicos de Drosophila descritos por T.H. Morgan e colaboradores. Eles alteraram aparentemente de forma aleatória todos os tipos de caracteres da mosca. No entanto, um estudo mais detalhado corrigiu esta impressão. Mutações do mesmo gene alteram normalmente, embora nem sempre, o mesmo grupo de caracteres. Deste modo, todas as mutações no gene “White” modificam a coloração do olho, e as do “yellow” a cor do corpo, além de outros atributos menos conspícuos.

Estudos bioquímicos sobre o efeito de mutações têm esclarecido a natureza do processo mutacional. Uma molécula de hemoglobina humana tem dois pares de cadeias protéicas, alfa e beta, com respectivamente 141 e 146 aminoácidos. Elas são codificadas por dois genes distintos que, todavia, descendem do mesmo gene ancestral que duplicou nos vertebrados primitivos, nossos ancestrais remotos. Pelo menos 22 diferentes variações das cadeias alfa e 42 da beta foram encontradas em populações humanas. Estas variações evidentemente surgiram por meio de mutações que ocorreram em ancestrais afins ou mais distantes das pessoas nas quais foram descobertas. A mesma variação pode ser encontrada em pessoas não afins em várias partes do mundo: mutantes semelhantes surgiram repetidamente. Muitos mutantes diferem da hemoglobina “normal” (que é o prevalente ou “silvestre”) por substituições únicas de aminoácido em algum lugar das cadeias alfa e beta.  Por sua vez, as substituições dos aminoácidos vêm de substituições de nucleotídeos individuais do DNA dos genes que codificam essas cadeias. De quantos modos um gene pode sofrer mutação por meio de uma única substituição de nucleotídeo?  Uma cadeia de 141 aminoácidos, semelhante àquela que codifica a cadeia alfa da hemoglobina, é especificada por 423 nucleotídeos. Cada um deles poderá ser substituído por uma das três outras “letras” do “alfabeto”; deste modo poderão ocorrer 1269 mudanças mutacionais devido à substituição de únicos nucleotídeos. Por causa da redundância do código genético, o número de substituições possível de aminoácidos será relativamente reduzido, mas ainda significativo. Este é um amplo repertório mutacional. Mesmo assim não significa que qualquer gene possa ser convertido em outro por meio de uma simples mutação.

Algumas das hemoglobinas variantes de populações humanas causam doenças hereditárias sérias ou mesmo fatais em indivíduos homozigotos para os genes mutantes. Outras são tão raras que aparecem apenas em heterozigotos que têm saúde normal. Contudo, comparações entre hemoglobinas de animais diferentes mostram que quanto menos aparentados tais animais o forem mais elas diferem quanto à substituição de aminoácidos. Evidentemente, algumas mudanças mutacionais que afetam hemoglobinas foram fixadas no transcurso da evolução. Por exemplo, a cadeia alfa humana difere em apenas 1 aminoácido da cadeia alfa do gorila, 17 do boi, 18 do cavalo, 25 do coelho e 71 da carpa. Tais diferenças surgiram com toda certeza não por meio de mutações únicas, mas pela acumulação gradual de mutações, das quais uma grande maioria por meio de substituições de aminoácidos. O acúmulo de mutações pode transformar um gene codificador de hemoglobina em outro que codifique qualquer característica? A mioglobina é uma proteína cuja função é armazenar oxigênio nos músculos. É uma única cadeia molecular de 153 aminoácidos. A mioglobina da baleia difere respectivamente em 115 e 117 aminoácidos das cadeias alfa e beta da hemoglobina humana. Os genes da hemoglobina e da mioglobina descendem do mesmo gene ancestral, o qual sofreu duplicação em nossos ancestrais muito remotos e desde então se diferenciou por meio do acúmulo de mutações.

Todos os genes de todos os organismos podem ser produtos de evolução divergente a partir da entidade primeva autoduplicadora que surgiu da natureza inorgânica há cerca de 3 bilhões de anos. Quimicamente, as mutações que foram acontecendo nessa entidade e seus descendentes eram erros de no processo de cópia, acidentes, acasos. A vasta maioria desses erros era desvantajoso, porque eram contrários à propagação e multiplicação de seus portadores.  As mutações retidas e que resultaram em divergência dos descendentes do gene primordial foram as “bem” sucedidas ou pelo menos “neutras” com respeito à sobrevivência e reprodução. Um gene é uma macromolécula e também um sistema orgânico que carrega em si bilhões de anos de história evolutiva. O repertório mutacional de um gene é devido à sua estrutura e, deste modo, de bilhões de anos de evolução. Por isso, o papel do acaso é limitado tanto em nível da origem de mutações quanto de sua fixação ou perda na população.

Mutações são ambíguas do ponto de vista adaptativo. Uma mutação surge independentemente que vá ou não ser útil para o organismo portador. Deste modo não é surpresa que a maioria das mutações sejam deletérias, letais ou no mínimo neutras. Mutações benéficas são uma pequena minoria. Este fato contradiz terminantemente todas as teorias de evolução autogênicas, ortogênicas, lamarckeana e neolamarckeana. Estas teorias tinham que assumir que de um modo ou outro a matéria viva reage a seus ambientes por meio de mudanças genéticas intencionais. Esta afirmativa é implícita e explicitamente vitalista e, indo mais diretamente ao ponto, foi desmentida por meio de numerosas mutações observadas em todos os tipos de organismos.

Outra crença equivocada é a que supõe que cada tipo e velocidade de mudanças evolutivas sejam determinadas pela freqüência com que as mutações ocorrem. Apesar de ter sido mostrado repetidamente que isto é um equívoco, essa concepção errônea se repete até mesmo na literatura recente. O processo mutacional não é sinônimo de evolução, ele apenas proporciona as variações necessárias para que as mudanças evolutivas ocorram. Sem a ocorrência de mutações o processo evolutivo seria interrompido. Porém, mutações ocorrem em todos os organismos. Populações naturais, particularmente as de organismos que se reproduzem sexuadamente, contém material mutacionais armazenado. Falta de material mutacional é provavelmente rara. Aquilo que é construído a partir desse material, além da velocidade com que esta construção ocorre, depende de outros fatores. O principal deles é a seleção natural.