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O Corsário e a Ciência

Textos de divulgação científica e reflexões sobre Ecologia da Saúde, à luz da teoria evolutiva ultradarwinista:

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Textos de divulgação científica e reflexões sobre Ecologia da Saúde, à luz da teoria evolutiva ultradarwinista:

28.09.10

Debate inaugural – Parentoni Martins & Zanette: Epílogo


Sérvio Pontes Ribeiro

 

Sérvio P. Ribeiro

Inicio meu comentário pela referência do Zanette sobre a “nova fronteira hamiltoniana”, que ele propõe quanto à aplicação da seleção de parentesco em angiosperma. Eu teria algum conhecimento de causa, já que Hamilton me co-orientou no estudo de história de vida Tabebuia (ipês), mas muito mais interessado na evolução de sexo e doença do que em seleção de parentesco. Ou seja, eu gostaria de apresentar este interessante e elegantíssimo debate do Parentoni com o Lorenzo, dando minha percepção do que foi a real revolução hamiltoniana que ele, Hamilton, queria fazer. Há sim, Parentoni está certo, algo além da seleção de parentesco, talvez muito mais forte, talvez, no lado oposto.

 

Sem dúvida Hamilton trouxe o entendimento da seleção natural atuando sobre genes, e não organismos. Porém, na prática o fez de maneira mecanicista e, eventualmente, nunca perdeu a noção da integridade necessária do par genótipo/fenótipo para o processo de mudanças de frequências alélicas dentro de uma população. No fundo, o fato é que ele trabalha modelos que eram organismos-genes (algoritmos genéticos de 1-2 loci apenas). Logo, onde a seleção natural atuava nem era primordial nos modelos dele, pois indivíduo era gene por simplicidade matemática (e mais nada). Agora, a última fronteira hamiltoniana não seria o avanço da seleção parental, como proposto pelo Zanette, mas sim a análise do processo oposto, que é a seleção de alelos raros via pressão de seleção por doenças, ou seja, a teoria de evolução do sexo e doença, no qual ele se debruçava por já 20 anos quando morreu.

 

Era nisto que ele pensava o tempo todo. Por este lado, eu tendo a concordar com Parentoni, pois para ele, a seleção de parentesco explicava a sociabilidade, matava o paradoxo do altruísmo, mas tinha mesmo pouco abrangência! No fundo, não foi construída com outro propósito senão explicar a bizarra atuação existencial das operárias de insetos eusociais, como abelhas, vespas e formigas.

 

A preocupação já era há muito tempo o sexo e a “soft-selection”(pressões seletivas dependentes de frequência e de densidade) causada por doenças., que por sua vez resulta em vantagem do não parentesco, pois a diversificação da prole resulta em tolerância e resistência às doenças. Na prática, talvez ele mesmo vislumbrasse que a doença seria o limite maior da seleção de parentesco. Um grupo familiar muito bem sucedido geraria uma linhagem geneticamente muito homogênea e esta, diante a uma doença nova, seria dizimada! O fato é que eu nunca o vi discutir (deliberadamente ao menos) seleção de parentesco. Parecia já uma página virada, e o pensamento estava todo na necessidade ou não de sexo na vida.

 

Por outro lado, ouso sim a dizer que há uma importância teórica na seleção de parentesco que claramente transcende sua limitada aplicação pragmática a certas formas de vida. Esta aplicação mais ampla, nem que como arcabouço teórico neutro ou de contraposição, é possível mesmo às angiospermas, como questionado por Parentoni. Afinal, a reprodução clonal assexuada, via rametes, é o mecanismo mais extremo de seleção de parentesco possível?!?! Entretanto, qualquer um poderia questionar a ausência do altruísmo no processo de reprodução assexuada. Porém, o ramete é uma estrutura autônoma que se desenvolve a partir do estolão, o qual morre na tarefa de afastar o ramete da planta mãe. No final das contas, há um enorme “sacrifício” energético e de biomassa neste processo reprodutivo, que também envolve perdas em prol do gene transferido. Se o processo da seleção de grupo é centrado na seleção do gene, a inversão de quem é sacrificado não muda a lógica aplicada. O caso extremo nas angiospermas seriam simplesmente a morte semélpara de uma roseta antiga antes do rebroto de rosetas novas, via tubérculos (exatamente como pode acontecer com Paepalanthus speciosus, na Serra do Espinhaço).

 

Finalmente, no limbo entre a biologia molecular e a evolução clássica, surgiu o debate inesperado em torno do significado de gene e da falta de autonomia dos indivíduos na colônia. Estes foram para mim os pontos mais interessantes da discordância dos dois colegas. Por um lado, a evolução da pesquisa genômica cria uma enorme dúvida e fluidez na percepção vigente do que seria o gene. Por outro lado (e concordando neste aspecto com Zanette), do ponto de vista ecológico-evolutivo o elemento genômico (ou genético, em vista da escala entendida) a ser selecionado ainda é a proteína gerada, seja ela fruto de um loci, ou de uma estrutura genômica mais complexa. As mutações vantajosas que resultem em novas expressões protéicas, sejam elas fruto de modificações genômicas amplas ou alélicas clássicas, vão ter melhores chances de serem transferidas para a próxima geração independente de qual seja o mecanismo exato de transcrição ou de sua origem no DNA.

 

Assim, se por um lado a seleção genômica e não de genes nos re-aproxima da seleção de indivíduos, a idéia discutida por Parentoni sobre a falta de autonomia existencial das operárias nos aproxima um pouco perigosamente da seleção de grupo, ao focar na seleção exclusiva da Rainha. E de fato, este não é o caso. Várias espécies de formigas têm alguma autonomia existencial, podendo sobreviver em bivaques itinerantes e longe da colônia, por dias. Igualmente, podem disputar e substituir Rainhas, ou reproduzirem consorciadamente em ninhos poligínicos. Muitas destas respostas comportamentais em formigas, hoje são entendidas como aprendidas e não inatas, refletindo a capacidade plástica de conduta de cada operária. Ou seja, a seleção é de parentesco, e tem potencial de atuar com cada indivíduo, que viria a ser favorecido ou não.

 

Assim, não abrangente, mas fundamental do ponto de vista teórico, a seleção de parentesco têm o grande valor de deixar viva a discussão na escala certa – e sem isto estaríamos perdidos em um reducionismo molecular cego a esta altura!