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O Corsário e a Ciência

Textos de divulgação científica e reflexões sobre Ecologia da Saúde, à luz da teoria evolutiva ultradarwinista:

O Corsário e a Ciência

Textos de divulgação científica e reflexões sobre Ecologia da Saúde, à luz da teoria evolutiva ultradarwinista:

02.04.20

A SARS-CoV-2 NÃO É UMA ARMA BIOLÓGICA. ENTENDA AS RECORRÊNCIAS DE PANDEMIAS ZOONÓTICAS E SUA ORIGEM: A FOME E O DESMATAMENTO


Sérvio Pontes Ribeiro

Sérvio Pontes Ribeiro

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Rotas de migração do H1N1 que infectou pessoas no México, em uma criaçao de porcos vindos dos EUA. Os mexicanos também quiseram dominar o mundo como os chineses?

As doenças de origem animal acometem as populações humanas por séculos. Como se trata de uma invasão a um novo hospedeiro, as defesas são poucas, e a tendência é da doença se espalhar rapidamente, podendo gerar uma pandemia, como a que enfrentamos agora, do vírus SARS-CoV-2. Junto com TODAS as pandemias registradas, acontecem também ao longo da história as teorias da conspiração. Inevitavelmente, sejam quais foram os meios de comunicação da época, se alastra uma série de ideias delirantes sobre alguém, algum governo, ter criado essa doença para dominar o mundo. Vou tentar desconstruir esse tipo de coisa descrevendo um pouco da história das pandemias.

As doenças nos acometem vindo de animais, às vezes devido à alimentação, as zoonoses, às vezes por transmissão secundária, via vetores Invertebrados, as chamadas arbodiseases (arthropod born diseases). A peste bubônica, causada pela bactéria Yersinia pestis, transmitida dos ratos às pessoas pelas pulgas, é um exemplo. As arboviroses, viroses transmitidas por mosquitos hematófagos, como a dengue, zika e chinkungunya, são outro grupo de tais doenças. Essas infecções são a causa de relações de medo e rejeição ao mundo natural pelo homem civilizado, em especial nos trópicos.

A despeito do medo das doenças encontradas em ambientes naturais, a relação dos homens com o mundo selvagem é natural e necessária. Uma das suas manifestações é a caça, de quase tudo! Por exemplo, as pessoas comem ratos em diferentes partes do mundo até hoje. É um habito comum, mas em muitas partes do mundo, um enorme tabu. A verdade é que tabus são reações etnoecológicas contra o risco de doenças. Uma possibilidade é que a combinação de  Leptospirose crônica e o surto da peste bubônica em meados do Sec. XIV, e que se repete em Londres por volta de 1665-66, tenha levado a Europa, que vivia nas mais precárias condições de higiene, a repudiar os ratos como alimento? Uma hipótese...

Uma doença zoonótica que se espalhou pelo mundo e mudou o comportamento sexual de duas gerações foi a AIDS. Esse vírus invadiu a espécie humana através da prática de caça e ingestão de chimpanzés, comum em algumas regiões da África. Mais uma vez, a alimentação de caça nos dias modernos, em sociedades urbanas e tecnologicamente estruturadas, resultou em problemas globais de saúde. No entanto, para aqueles na pobreza e fome, não há opção senão caçar. Assim como hoje com a COVID-19, houveram diversas teorias de conspiração sobre a criação de laboratório dessa doença, todas refutadas.

Várias zoonoses, portanto, tem grande potencial em resultar em pandemias quando invadem a espécie humana. Gripes aviárias e suínas, as chamadas HxNx, como a H5N1, e a terrível H1N1, são exemplos recorrentes. A H1N1 foi a causadora da gripe espanhola, cuja origem nunca foi descoberta, tendo a pandemia começada durante a Primeira Guerra Mundial, acobertada pela maioria das nações e apenas revelada na Espanha, no primeiro momento. Seu gene foi resgatado de corpos na década de 90, quando a biotecnologia já permitia resgatar a estrutura de RNA preservada, especialmente em  corpos em regiões congeladas, como no Alaska.

A H1N1 de 2009 iniciou uma pandemia e hoje está presente em todo o mundo, e coexistimos com milhares de mortes anuais, porém suficientemente controladas pela existência de uma vacina. Sua origem está na alimentação de porcos no México, o que traz a questão para outro patamar: parar de caçar mas criar animais. Sem a devida vigilância sanitária, nos expõe aos mesmos riscos da caça. A ausência de vigilância sanitária é, por definição, uma outra característica típica da pobreza.

Essa é a realidade atual do SARS-CoV-2. É mais que alimentarmos de animais infectados, mas sim de alimentarmos de animais doentes. A diferença está no fato de que animais saudáveis, ou seja, em condições ideais, com a devida qualidade de vida, mesmo infectados são menos acometidos por doenças. Doenças se dão quando o organismo parasitário reproduz excessivamente dentro do hospedeiro, causando danos em seus órgãos e funcionamento. A doença tem origem ambiental. Quando a alimentação de animais selvagens se dá pela captura e péssimo acondicionamento dos mesmos, vivos, e em confinamento de múltiplas espécies, a chance de adoecimento generalizado e interespecífico se alastra. A culpa disso? Pobreza e desmatamento. Nada além da busca de uma fonte barata de proteína, e poderia ter acontecido aqui, na África, Indonésia, onde houver pobres e pouco saneamento e vigilância sanitária.

 

 

08.03.20

Mulheres nas Ciências Biológicas no Dia Internacional de Luta pelos Direitos das Mulheres.


Sérvio Pontes Ribeiro

 

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Valerie K. Brown, minha orientadora de Doutorado no Imperial College, Diretora do International Institute of Entomology

Raquel Thomas, primeira Doutora Pesquisadora em Ecologia da Guiana Britânica, minha melhor amiga no doutorado.

Vão estranhar eu começar esse texto falando de um homem, mas logo vão entender. Paulo Vanzolini é reconhecido como um dos maiores compositores de samba da contemporaneidade, mas além de sambista, ele era Professor Titular da USP, Zoólogo e curador do museu de história natural daquela universidade. Um grande biólogo, especialista em anfíbios. Anos antes de sua morte vi uma entrevista fantástica com ele, onde lhe foi perguntado por que com todas as músicas dele publicadas sendo aclamadas ou mesmo premiadas, foram porém tão poucas? Com ar resignado, Vanzolini respondeu algo como “meu filho, a Zoologia é uma esposa muito exigente, nunca tive tanto tempo assim para o samba ou outras coisas”. Cada palavra me marcou, mesmo não garantindo a exatidão dessa frase. Escrevo isso em um sábado, meio dia, na varanda do nosso laboratório no Parque Estadual do Rio Doce, longe de casa faz 10 dias, coletando espécies de Diptera hematófagos para minha nova fase na carreira. Carreira de entomólogo, o mais obcecado dos zoólogos, e que não acabará, não aposentará, ou, na fala de Paulo, não aceitará outra coisa senão “até que a morte nos separe”.
Nessa lida me lembrei de um sonho por mim não sonhado, mas de uma aluna de graduação, que em uma dessas viagens para cá se apaixonou perdidamente pela entomologia. Ela com um pouco de receio, acabou contando que sonhou que tinha perdido o próprio casamento, porque estava coletando insetos. A coisa foi cinematográfica, com igreja fechando, transferência do lugar da festa, se descobrir na porta da igreja com potes de insetos e ainda sem maquiagem, até que quando resolve entrar, as amostras caem e se perdem, e ela acorda.
Que Carl Jung me perdoe a heresia de uma intepretação rasteira desse sonho, mas não lhe parece, leitor, que ainda temos um medo subconsciente de ter que escolher entre uma carreira demandosa ou afeto, mas que é esse um medo exclusivamente das mulheres? De fato, ao menos para as carreiras de desbravamento, aos homens sempre foi dado o direito inquestionável de viajar por meses a zonas remotas (para o bem ou para o mal do meio ambiente) e manter uma família feliz e apoiadora, mesmo que saudosa.
A pergunta, em homenagem ao dia internacional da luta pelos direitos das mulheres, é se os homens de hoje são machos o bastante para dar suporte a mulheres de carreiras difíceis e exigentes, como são as de ciência. Esse é o momento que uma feminista iria me condenar à fogueira por achar que mulheres precisam de suporte dos homens, mas de fato, TODOS precisamos de afeto, família e apoio. Então, sim, precisam de apoio de seus parceiros, todas as mulheres. Eu, que formei em meu laboratório 60% de mulheres e vi empregadas em ciência na razão 1:1, garanto que quem não vingou não teve apoio de seus maridos, com uma ou outra exceção, que, por si só, não quis tanta demanda quanto a que nossa carreira científica nos impõe. Um sonho desses me faz refletir no óbvio imponderável e tão difícil, em especial para elas: o dia que o machista não for escolhido como parceiro, deixará de existir, mas, existem homens à altura do extraordinário dessas mulheres? 

26.02.20

O que é um mudlarks, e o que tem eles com a chamada ciência cidadã?


Sérvio Pontes Ribeiro

Me chamou a atenção um artigo do The New York Times, sobre os “mudlarks” e sua intensa atividade no rio Tâmisa, dentro de Londres. Uma palavra desconhecida para mim, prima dos “trainspotters”, que se tornou famosa pelo cinema britânico dos anos 90. Talvez, antes de tudo, eu devesse explicar o que seja a ciência cidadã.

Ciência cidadã é um processo de envolvimento das comunidades leigas na geração de dados científicos, com aprendizado ao longo do caminho, grosseiramente falando. Digo grosseiramente por que há enorme variação na definição de protocolos de ação entre os cientistas e as pessoas em colaboração. Como muita da informação gerada é repassada a depositórios em tempo real, via aplicativos de celulares, o envolvimento vai da mera captura e compartilhamento de dados, seguindo instruções pré-estabelecidas pela ciência, até ao envolvimento das pessoas no estabelecimento de metodologias, delineamentos e objetivos da pesquisa. Do quase nada ao muito includente, ciência cidadã têm feito sucesso em diferentes ambientes culturais, e daí as diferenças de técnicas, e aí que os “mudlarks” entram.

Na verdade, o primeiro exemplo de ciência cidadã que eu conheço em ecologia surgiu na Europa, cerca de cinco anos atrás, quando um grupo financiado pela British Ecological Society, convidou observadores de árvores a relatarem com fotos georreferenciadas, suas descobertas de fim de semana. Um dos maiores levantamentos arbóreos da Inglaterra se construiu dessa maneira. De volta na década de 90, durante meu doutorado, tive contato com um estudo que coletou dados de observadores amadores de borboletas em toda a ilha, gerados por amadores por mais de 100 anos, e que conseguiu mostrar uma relação clara entre a expansão da iluminação artificial e a diminuição de várias populações desses insetos.

Os ingleses, famosos observadores de tudo (horários de trem, os “trainspotters” ou pássaros, os “birdwatchers”, sendo os mais famosos) e por muito tempo, estão mergulhados em uma cultura de apreciação do ambiente e dos acontecimentos. Pode-se dizer que uma parcela substancial da população sempre foi “naturalista amador”. Não só pelo prazer da observação, mas pela meticulosidade das anotações, dados confiáveis e passíveis de tratamento estatístico-científico adequado puderam ser resgatados dessas pessoas. Agora veja, em uma sociedade onde esse tipo de atividade é secular, não é necessário estruturar uma ciência cidadã inclusiva, que defina normas e compartilhe o conhecimento com os “coletores”. Os coletores, ao contrário, é que compartilham seu vasto conhecimento amador, sistematizado, com os cientistas. Afinal, como disse Thayer (2002 – A crise não moderna da universidade moderna, Ed. UFMG), a ciência formal não mais é do que a coletânea dos saberes tradicionais que o mundo dominador considera de maior relevância.

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Um guia de identificação de árvores para amadores, usualmente usados com

um "Pathfinder", um mapa de escala 1:100, que permite o  botânico amador iden-

tificar e registrar a localização de cada espécie em seu mapa.

Nesse sentido, os “catadores de objetos na lama”, os “mudlarks” que inspiraram esse texto, entram como arqueólogos amadores. Aqui, como há captura de objetos de importância histórica, e outros nem tanto, bastou ao British Museum e a Prefeitura de Londres normatizarem as regras de entrega de peças de valor histórico ao museu. Até onde sei, algo que é feito com prazer, em um país onde os museus são entendidos como do povo, e o conhecimento coletivo mais importante que a possessão privada (ao menos na classe média).

Como deve estar claro nesse momento, há um notável contraste dessa realidade com nossa, ou da maioria dos países colonizados e largados à sua sorte, onde os conhecimentos tradicionais foram desprezados, e os científicos elitizados. Nesse ambiente, tipicamente latino-americano, a universidade tem que se apresentar em outro contexto, e assumir seu papel transformador da sociedade, portanto, educador. Aqui, a ciência cidadã é mais difícil de construir, pois precisa crescer junto com uma melhor comunicação da ciência, que alcance os anseios do interesse das comunidades pelo saber.

Lembremos que na Inglaterra, desde 1660, quando a Royal Society foi criada, os cientistas faziam palestras públicas, demonstrações de seus experimentos para os demais e outras formas de comunicação da ciência. O objetivo era levantar fundos, e a “sociedade” aqui eram os mais nobres e ricos. Mesmo assim, quando a ciência é um show enriquecedor, ela alcança a curiosidade humana de qualquer um, e pode essa ser uma das origens dos diversos “cientistas amadores” ingleses (resta verificar se esse percurso fez dos ingleses mais imunes que outros povos à farsas científicas, como movimento anti-vacina ou terraplanismo, mas isso é para outro texto).

Portanto, para vencermos na busca de apoio cidadão para obtenção e compartilhamento de dados, precisaremos primeiro explicar o que e porque fazemos o que fazemos, e sempre atento aos saberes não tradicionais, e sua difícil leitura na ótica cartesiana. Uma tarefa árdua, mas grandemente empoderadora. Iniciaremos um projeto assim, com estudos de insetos vetores de doenças, na bacia do Rio Doce. Em breve, mais notícias sobre a ciência cidadã aqui.

30.01.20

Pandemias são interrompidas pela Ciência, e só: temores em um mundo politicamente negacionista.


Sérvio Pontes Ribeiro

Sérvio P. Ribeiro

Cientistas investigam a natureza. Desde a descrição de fenômenos, formas, quantidades e comportamentos, até a formulação de predições sobre acontecimentos futuros, baseados no entendimento presente e passado dos fenômenos naturais. Por exemplo, faz 20 anos que os cientistas alertam para as mudanças de regimes de chuvas, com cenários mais IMPREVISÍVEIS e com eventos EXTREMOS mais FREQUENTES, caso o aquecimento global criado pelo homem não fosse revertido. Não foi, e terça feira, 29 de janeiro, de forma IMPREVISÍVEL, as partes mais ricas da cidade de Belo Horizonte foram devastadas por uma chuva que superou os desastres das tempestades de 2017 (nessa parte do mundo, essas chuvas EXTREMAS deveriam se repetir naturalmente em intervalos de mais ou menos 20 anos, estando agora mais FREQUENTES), ou das de sexta feira anterior, que ainda mais gravemente devastaram regiões carentes da cidade. Previsão = acontecimento futuro. Dentre tantas coisas, para isso serve a ciência.

O problema é que quando cientistas fazem essas previsões, não querem acertar. Querem alertar as sociedades de perigos iminentes, e causar mudanças em políticas públicas, e comportamentos sociais, de forma a evitar danos às pessoas, ao meio ambiente, às economias. No caso do aquecimento global, sempre que fenômenos climáticos extremos e imprevisíveis atingem os ricos, os fazem perceber que não há onde esconder, e mudanças contra o aquecimento começam a acontecer.

Doenças também são assim, ao menos quando a forma de transmissão impede que se possa escapar delas por ter algum dinheiro. Portanto, ao contrário das doenças negligenciadas (doença negligenciada é um nome bonito que a epidemiologia achou para doenças que acometem pessoas predominantemente vivendo em pobreza, para as quais não há investimento em pesquisa para cura ou controle, ao menos na escala devida), vírus que se espalham rapidamente com grande risco de contaminação e morte, ou que minimamente causarão rupturas no sistema econômico global, fazem o mundo se mobilizar por soluções rápidas. No entanto, enquanto a grande parte dos governos (ou seus Ministérios da Saúde) e Instituições internacionais fundamentam suas decisões no entendimento preditivo da ciência, sempre há aqueles que pensam que a culpa é do pobre que pôs o barraco no lugar errado, não comeu direito, não se higienizou adequadamente, e prefere não agir responsavelmente.

Desde o início deste Século, o mundo enfrentou três pandemias viróticas de forma bem-sucedida, mas só porque foram seguidos protocolos científicos aceitos globalmente para conter a expansão desses vírus. Resumidamente, epidemiologistas usam uma constante chamada H0, que é o número de pessoas que uma pessoa contaminada pode infectar. Rigorosamente, esse é a Taxa intrínseca de incremento populacional. Uma medida classicamente ecológica, que define com que velocidade uma população de uma certa espécie consome os recursos disponíveis, os convertendo em reprodução. Portanto, é uma medida da velocidade de multiplicação de indivíduos, no caso, de vírus. Essa é uma medida exponencial, que quer dizer que após um certo ponto, é impossível de ser freada.

Em condições naturais, o aumento no número de indivíduos de uma população encontra outra constante, a “K”, ou Capacidade Suporte, número máximo de indivíduos que um ambiente pode sustentar. O problema de certas viroses é que o H0 é muito alto, e as infecções ultrapassam tão rapidamente a capacidade suporte, que a relação entre o hospedeiro e a doença entram em colapso. Sendo nós o “recurso” para o vírus, estamos falando de índices aterradores de mortalidade e ruptura social, como aconteceu com a peste negra ou a gripe Hispaniola. Usando a epidemiologia e a ecologia, é fácil perceber que se tirarmos o “recurso” (pessoas sadias) do alcance do vírus antes dele se espalhar exponencial, e descontroladamente, interrompemos esse ciclo mortal. Ciência, predição e ação. 

No entanto, em todos esses casos anteriores, as formas emergentes dos vírus não eram capazes de transmitir por aerolisação, ou seja, pelo ar e independente de partículas de saliva ou fluídos corporais. Agora, 2020, uma nova pandemia de coronavirus avança, e os padrões sugerem a possibilidade de ser capaz de infectar pessoa a pessoa, e pelo ar. Um outro detalhe preocupa em 2020: a maior parte da população humana está nas mãos de governantes autoritários ou, quando democráticos, negacionistas da ciência. O medo não é do vírus, mas de que em regiões chave do mundo, com largas rotas migratórias e comerciais, a ciência seja ignorada em função de critérios político-financeiros. Um governo responsável trata seu Ministério de Saúde como um segundo Ministério de Ciência e Tecnologia, capaz de dialogar e criar força de trabalho com as universidades e centros de pesquisa. Essa base institucional de diálogo e colaboração no controle epidemiológico é presente no Brasil há várias décadas. Já a tradição de escutar os cientistas tem variado de tempos em tempos, com consequências quase sempre graves.

Alguns dados mais recentes, atualizados dia 30 de janeiro as 7:00 no Brasil que estão sendo divulgados pela Nature diariamente e pelo site : “https://gisanddata.maps.arcgis.com/apps/opsdashboard/index.html#/bda7594740fd40299423467b48e9ecf6”:

1 - Há três casos de contaminação fora da China: Alemanha, Vietnam e Japão, detectados dia 28-01.

2 - Há 7.783 casos confirmados no mundo (dia 26 eram 2.744, dia 28 eram 4.690, 6057 no dia seguinte: uma taxa já ultrapassando 60% de incremento, desde o dia 26), em 19 países, incluindo Tailândia, Hong Kong, Taiwan, Japão, Macau, USA, Alemanha, França, Canadá etc. A expansão é a mais exponencial que do último coronavirus, dentro da China.

3 – China já disponibilizou a sequência genética do vírus, mas não amostras cultivadas em laboratório. Austrália já está, mesmo assim, crescendo o vírus em cultura de células para pesquisar vacinas.

4 - Outro risco é que aparentemente pessoas sem sintomas podem estar transmitindo. Com isso tudo sendo levado em conta, a média de pessoas infectadas por cada contaminado (H0) está entre 1,4 e 2,5, mesmos valores do SARS de 2002-03.

5 - Como sempre, esses vírus se tornam agressivos porque acabaram de invadir a espécie humana, potencialmente vindos da horrorosa sopa de morcego, e quando invadem um hospedeiro novo, são agressivos, e não darão muita chance para resposta imune rápida.

6 - No entanto, se o isolamento do vírus for eficiente, sua própria agressiva taxa de crescimento levará ele ao colapso (ele segue as chamadas dinâmicas de crescimento caóticos). Tirando as pessoas de perto, ele é facilmente extinguível. Algo mais difícil de fazer se transmitir pelo ar.

Os cuidados são os mesmos das outras pandemias: 1 - mãos sempre lavadas, 2 - distância de gente tossindo (e gente tossindo - não os outros - usando máscaras, senão vai faltar máscara para quem precisar de fato), 3 - sem dedo na boca, nariz, olhos etc 4 - sem compartilhar comidas e talheres, 4 -  governo forte e transparente, agindo alinhado com a ciência, os cientistas e médicos.... sem firula ou politicagem numa hora dessas.

Figura 1 – Progressão em tempo real do coronavirus de Wuhan pela GisandData.maps.arcgis.com

28 de janeiro

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15 horas depois:

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15.05.19

A EXCELÊNCIA CIENTÍFICA DAS UNIVERSIDADES FEDERAIS SEMPRE FOI CAPITALISTA E LIBERAL


Sérvio Pontes Ribeiro

Sérvio Pontes Ribeiro

Uma das grandes alegações desse governo atual para punir e sufocar financeiramente as Universidades Federais está calcada em acusações de ineficiência e balbúrdias, além de terem se transformado em um antro esquerdista. Há eco a isso, e vários apoiadores denunciam que as Federais são geridas por partidos de esquerda. Vamos investigar essas afirmações.

 

Faço aqui uma avaliação desse momento delicado, mas alerto que é minha visão pessoal. Sou professor de Federal e gestor de recursos públicos para pesquisa, os quais nos chegam por editais de ampla concorrência do MCTI ou fundações Estaduais de Amparo à Ciência. Somos um grupo diverso de pessoas e não falo por ninguém mas eu mesmo: Ph.D pelo Imperial College, UK via financiamento público federal, verbas devidamente restituídas ao Brasil pela Embaixada Britânica que me agraciou depois da minha volta com um projeto de treinamento em pesquisas florestais. Esse projeto custou mais do que o que o Governo tinha gasto com minha formação, e foi a base para a criação de um Programa de Pós-Graduação novo em Ecologia, aqui no Brasil. Falo em nome de quem acredita que verbas devem achar as mãos capazes de transformá-las em capacitação e conhecimento, e retorne desenvolvimento. O que será novidade para muitos, é que o sistema brasileiro de Pesquisa-Ensino nas Universidades Públicas já funciona assim, e só agora está ameaçado.

 

Mas vamos avaliar a presença de alas esquerdistas nas Federais. Há mesmo influências de esquerda em alguns setores, mas o que todos sabemos lá dentro é que essa influência se restringe em grande escala nos entornos sindicais, ou no tempo livre dos improdutivos. Detalhe é que na verdade isso vai tanto à esquerda quanto à direita, pois se acham que não há grupos internos defensores e propagadores do atual governo, se enganaram. Há, mas ambos, enquanto ativistas políticos, são os menos competitivos entre nós, e uma minoria. Todos podem ter seus lados, e costumávamos respeitar e mesmo nem saber que lado era esse antes das redes sociais. A base da ciência ocidental é colaboração intelectual, distante da política e da religião, desde a criação da Royal Society, em 1640. Quem não segue isso, para mim, é um desocupado, de esquerda ou de direita.

 

Agora vamos avaliar o porquê eu estou criando vários inimigos no meu ambiente de trabalho afirmando isso, em um dia de defesa das universidades federais. Primeiro, porque esses são a minoria absoluta. Em cursos de ciências exatas ou biológicas, onde a maioria das patentes, tratamentos, remédios, técnicas essenciais para o desenvolvimento e bem-estar das pessoas são criados, poucos tem tempo de se ocupar da política. Os atuais ataques à nossa sobrevida nos fizeram sair dessa bolha e lidar com a política, mas fazemos de má vontade. Queremos é fazer pesquisa. Agora, o que poucos estão vendo é que esses 30% de cortes no funcionamento das Federais se somam aos mais de 40% de cortes do Ministério de Ciência e Tecnologia, a despeito dos gritos solitários de protesto do Ministro Pontes, o único que parece defender os objetivos e funções de sua pasta.

 

O que o cidadão comum, em especial de direita, precisa saber, é que nesses cortes o governo está matando o sistema capitalista e liberal mais eficiente em atuação no serviço público, e jogando os mais competentes à mercê dos incompetentes ou ao corporativismo do serviço público. Afinal, o que diferencia esses grupos é a quantidade de verbas que cada um trás para as Universidades. Sim, caro leitor, o dinheiro de pesquisa não chega automaticamente, chega para projetos específicos que concorrem por essa verba. Um processo cuidadosamente auditado em todas as fases.

 

A distribuição de verbas de Pesquisa, de agências como o CNPq e a CAPES, são feitas por editais públicos, onde qualquer Instituição de ensino E pesquisa, público ou privado, pode concorrer. As universidades públicas produzem mais ciência porque acumulam mais competências e ganham mais verbas, de forma competitiva e capitalista, o que muitas vezes inerva quem não ganha, que nos acusam de meritocratas e elitistas!  Porém, é o sistema capitalista mais bem montado na prestação pública de serviços, com as universidades tendo pouquíssimo controle sobre a distribuição de verbas de ciência, o que garante liberdade política, e combate o corporativismo. Ou seja, os mais competentes laboratórios não precisam puxar o saco de ninguém. Um processo lícito e eficiente que em duas décadas nos colocou como a 14a produção científica do mundo, e que acaba agora, com esses cortes, e nos jogam na boca dos leões, ou, na análise governista, dos esquerdistas.

 

Mas então nos perguntamos o mais importante: a quem beneficiaria esses cortes? A qualquer um, nacional ou estrangeiro, que não tem interesse em um Brasil científico, tecnológico e competitivo. Momento esse que começamos a nos perguntar se estamos guinando à direita com um governo que nos apoia em um mundo capitalista, ou sendo vendidos como sucata a outros capitalistas não brasileiros a quem os governantes são subjugados? Não é lícito perguntar?

 

O objetivo desse texto que a todos vai irritar é mostrar que o gasto do dinheiro público no consórcio Ensino-Pesquisa é eficiente, honesto e produtivo, e que todo esse investimento não se mantém inerte se há um corte do repasse de verbas. Ciência é interesse de Nação, de Soberania, e em todo o mundo capitalista é financiado pelos Estados.

 

Com os cortes muita coisa vai se perder e recuperar isso seria muito mais caro que a economia do contingenciamento. Pensem em biotérios – animais mantidos vivos há décadas que deverão ser sacrificados, coleções que se perderão e custaram milhões para serem obtidas em campo, equipamentos caríssimos que precisam de manutenção. Fora toda a corrida para ser o autor de uma descoberta, que perderemos para grupos estrangeiros. Não há senão o fracasso nacional em todas as escalas, e o fortalecimento daqueles que dizem estar combatendo com os cortes “sanadores”.  Não há o que sanar, senão a influência de fake News na cabeça das pessoas comuns.

 

Assim, seguem alguns sites com esses dados, e alguns posts de fácil difusão, com informações didáticas sobre o que fazemos.

https://www.instagram.com/ufmgpesquisa/?utm_source=ig_profile_share&igshid=pbl1i658ut8g

 

https://jornal.usp.br/ciencias/fabricas-de-conhecimento/?fbclid=IwAR3PLPOgEpMriXiGQZUrn-0n2fd19NM6tvV56_ObpkYXZZ3kFxLdVwZKTSE

 

https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/educacao/2019/05/13/internas_educacao,1053232/cortes-do-mec-nas-federais-com-nome-e-curriculo-conheca-vitimas-ufmg.shtml

07.12.18

FLORESTAS URBANAS E COEXISTÊNCIA HOMEM-ÁRVORES (EM TEMPOS DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS)


Sérvio Pontes Ribeiro

Começo esse texto vendo as imagens da tempestade de ontem, dia 06 de dezembro, onde centenas de árvores caíram em Belo Horizonte, inclusive causando uma morte. Talvez não haja momento mais difícil, mas também oportuno para este texto. Porém, alerto que sua leitura em momento tão emocional, que dificulta a percepção dos fatos e suas causas, pedirá que o leitor recomponha toda a racionalidade possível para perceber onde temos de fato um problema, ou uma solução mal gerenciada. Em resumo, as cidades precisam das árvores e elas não são o problema!

Para falar das árvores na cidade, em especial de tantas caindo, precisamos primeiro ir na causa destas quedas: uma tempestade de granizo que, segundo dados coletados pelo Jornal Estado de Minas com a Defesa Civil, desceu 42,6 milímetros de água em 2 horas e 50 minutos. Ou seja, 17,04 mm por hora. Considerando que temos uma precipitação anual de 1500 mm, portanto de 0,17 mm/hora, em média, choveu 100 vezes mais que a média esperada para o ano em uma tarde, e com ventos de 75 Km/hora! O serviço Meteorológico da CEMIG relata 75 mm em menos de uma hora em Contagem ontem. Com esse dado, foram 440 vezes mais chuva em uma tarde do que a média por hora/ano. Portanto, podemos ser mais precisos dizendo que tivemos uma segunda tempestade que matou pessoas em BH esse ano, tendo sido a primeira do Vilarinho, em novembro. No Vilarinho morreram mais pessoas, levadas pelas águas do córrego que ali a cidade um dia canalizou. Precisamos entender que inundações são muito mais difíceis de controlar e evitar do que quedas de árvore, mas que ambas estão associadas.

No dia 06 de dezembro, a tempestade matou uma pessoa e centenas de árvores em Belo Horizonte. Considero essa a informação mais importante deste texto e necessária para que os leitores abracem o projeto de árvores urbanas. Aqui também precisa ficar claro que as inundações do Vilarinho e outras partes da cidade vão ser piores se colocarmos a culpa nas árvores e não nas tempestades. Há um ponto fundamental que passa desapercebido pela maioria das pessoas: as piores inundações acontecem nas regiões menos arborizadas e mais pavimentadas da Capital mineira. Não é coincidência, pois afinal, a existência de solo permeável com árvores é a única maneira de evitar transbordamentos.

A necessidade de solo exposto para absorver a água é óbvia, mas as árvores tem um papel essencial nisso: elas retém a chuva nas copas, e assim desaceleram a chegado de todo o volume de água ao solo, dando o tempo necessário para absorção gradual da precipitação pelo subsolo, retardando o ponto de saturação de água no solo superficial, e assim evitando escorrimento e inundações. O sistema radicular também evita compactação do terreno, e aumenta a capacidade de absorção por volume cúbico de terra. Quer um exemplo onde isso funciona? Avenida Francisco Deslandes no Anchieta, cuja “cabeceira” tem o bem arborizado Parque “Julien Rien” e acima deste, a Serra do Curral. Por causa deste tamponamento florestal, essa avenida é uma das que menos inundam em BH.

A importância disto se intensifica quando se olha para as projeções do “International Energy Agency”, que aponta um aumento de 3,7 % nas emissões de Carbono em 2018, interrompendo um ciclo de diminuição. Lembrando que o Carbono atmosférico é apontado como principal responsável pelo aquecimento global. Porém, se olharmos o gráfico da NASA abaixo, veremos que em mais 30 anos fecharemos um século com partículas de Carbono acima de um patamar nunca alcançado em tempos geológicos recentes. A questão mais relevante é que essa ascensão na concentração atmosférica de Carbono se dá, na escala geológica, em um intervalo de tempo extremamente pequeno. Com isso, seguem-se todas as imprevisibilidades e extremismos climáticos, para os quais a ciência vêm alertando desde a década de 90. Haverá um ponto irreversível, mas antes de chegarmos nisso, o que as cidades podem fazer a respeito?

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Fonte: NASA Observatory for Global Climate Change: https://climate.nasa.gov/climate_resources/24/graphic-the-relentless-rise-of-carbon-dioxide/

Primeiro e emergencialmente, se preparar. Aumentar as áreas de drenagem, em especial nas zonas de cabeceira dos antigos rios que hoje correm embaixo de avenidas. Criar parques com o objetivo primário de absorver chuva e aumentar a saúde geral do ecossistema urbano (por exemplo, intercalando áreas verdes dentro de regiões intensamente construídas). Intensificar investimentos no manejo e saúde das árvores de rua, incluindo podas sanitárias rotineiras (e não apenas voltadas para a proteção de fios). Converter sistema elétrico aéreo para subterrâneo. Criar protocolos de contingenciamento e proteção ao cidadão, com clara indicação de proibição de acesso a áreas de risco durante tempestades. Ou seja, combater a especulação imobiliária que tenta a tudo pavimentar, e pensar no bem-estar e segurança da população antes de tudo. Não se pode esquecer nunca que o acontecido nas regiões Centro-Sul no dia 06 de dezembro e no Vilarinho dia 15 de novembro, são catástrofes climáticas, em grande parte com danos imprevisíveis e improváveis de serem evitados. Ao longo do tempo, as cidades serão convocadas internacionalmente para contribuir para combater esses eventos, decorrentes exclusivamente do aquecimento global.

Para respondermos a esse desafio, precisamos entender que é preciso mudar o ecossistema urbano para que ele sequestre Carbono mais do que emite, ou que ao menos cheguemos a níveis balanceados de emissão/sequestro. Sequestro de Carbono atmosférico significa “fotossíntese”, portanto, mais e não menos, árvores. Para que um ecossistema florestal-urbano funcione, precisamos trabalhar para o rápido entendimento político de que é urgente investir em Secretarias de Meio Ambiente que abracem Parques e Jardins com mesmo esforço e investimento que abraçam saneamento básico, água e esgoto.

Arborizar é uma questão de obras, planejamento e segurança climática.

16.08.18

A onipresença da seleção natural e novos ataques pseudo-científicos à Teoria da Evolução


Sérvio Pontes Ribeiro

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Sérvio Pontes Ribeiro

Esta reflexão surge da leitura (incompleta, confesso) de um best seller, o “Sapiens: uma breve história da humanidade” do “Yuval N Harari”, enquanto assistia a 2a Temporada de Orphan Black. No livro, toda uma vasta (e excelente) explicação sobre o que é a biologia evolutiva para o público leigo converge para uma estranha conclusão sobre o que o autor chama de “Design Inteligente”. Na série de TV, algumas mulheres vão descobrindo que são clones e parte de um experimento secreto e ilegal, cujo líder é o grande defensor do conceito de “Neolution”, uma invenção da ficção científica, claro. No entanto, com um nome ou outro, ambos instrumentos de comunicação debatem pelos seus meios o direcionamento dos caminhos evolutivos do homem pelo homem, e não mais pela seleção natural. Curioso que a série de TV parece se manter mais fiel a conceitos de biologia molecular a seu alcance do que o livro. Ao menos “Orphan” discute certas impossibilidades e questões moleculares com suficiente clareza, enquanto expõe o fato de que a Neolution é um processo fascista e excludente, que visa interesses militares e de dominância. Harari faz sim questionamentos importantes, induz reflexões necessárias sobre a bioética, mas rompe nas suas conclusões como a humildade dos fatos biológicos, e nos empodera para além da natureza.

A diferença que preocupa entre uma série e um livro sobre ciência é que qualquer um sabe a diferença de realidade e ficção. Por outro lado, um livro que tem objetivo de explicar a evolução, não deveria terminar com um capítulo dedicado a uma nova evolução gerida por nós, e menos ainda chamar isso de “design inteligente”. O conceito em si esconde um perigo de entendimento, em especial nos EUA. O “design” é um pseudo-conceito científico, com abrigo em algumas universidades americanas e mesmo um museu, onde criacionistas “provam” a existência de um Deus que desenha inteligentemente a vida e descartam os processos que levaram, erroneamente, os biólogos a aceitarem o darwinismo e suas vertentes. Nada que os “designers” fazem tem base metodológica aceitável, nenhuma crítica à evolução se sustenta diante de qualquer escrutínio mediano. Porém, precisamos lembrar que estamos falando de um país em que pessoas com títulos de Ph.D aparecem frequentemente na televisão dando relatos de provas irrefutáveis sobre a influência dos alienígenas na construção da nossa sociedade, presente e passada. Ali, a liberdade vai ao absurdo de permitir que algo que não é ciência se chame como tal e acomode-se em centros notadamente de pesquisa.

Claro, o “design inteligente” do Harari é um pouco diferente. Para ele, nós somos os desenhistas da vida, não Deus. No entanto, em ambiente onde a crença define e formata o pensar, é um passo muito curto e profundamente subliminar o que o livro permite, se não induz maliciosamente: que um leitor crente salte sobre a conclusão, para ele óbvia, de que se nós desenhamos, é Deus que guia nossa mão na reconstrução da vida. Se recria hoje, pode ter criado no passado. Nada disso, claro, está no livro. Nem de longe! Não se fala de Deus, mas tira de forma inquestionável, a seleção natural do nosso futuro evolutivo, usando um conceito criacionista. Portanto, dá na mesma, é como se falasse. De certa forma, ainda muito subliminar, fica fácil crer que o que nos parecia “evolução” nos bilhões de anos anteriores era uma longa e paulatina criação divina.

Mas então, do que de fato se tratam os avanços e mudanças que impomos a nós mesmo pela engenharia molecular, se não é um novo processo evolutivo? Primeiramente, precisamos esclarecer que nossas ações sobre a biologia que afetam, no sentido de mudar a direção da seleção natural, existem tempos antes de Watson e Crick, e em alguns casos não dependem de manipulação genética de nenhuma natureza. Nos casos que dependem, temos o velho e bom melhoramento genético (seleção artificial) de espécies domésticas, que inclusive Darwin usou para ilustrar como a seleção natural funcionaria.

Nos casos que não há nada de manipulação genética, por exemplo, temos a perda de acuidade visual no homem moderno. Da necessidade de caçar e não ser caçado, também de perceber com clareza a profundidade entre galhos, numa vida total ou parcialmente arbórea, evoluiu nossa acuidade visual. A física ótica e a invenção dos óculos e lentes causaram um efeito sobre a seleção, mas não a destruíram ou sua ação sobre nós. A seleção natural da capacidade visual nas populações humanas indígenas é a chamada direcional, ou seja, elimina os genótipos variantes com menor acuidade, por incapacidade de caçar ou por aumento de risco de mortalidade por predação ou acidente. Não se vive tanto vendo mal, por isso também não se reproduz muito, e assim se é gradualmente eliminado. Criar óculos então passa a funcionar como a eliminação de predadores ou a facilitação da caça, e é descrito como afrouxamento da seleção natural. O afrouxamento é um processo perfeitamente “selvagem” no seu mecanismo, que acontece por exemplo em aves de ilhas oceânicas que perdem a capacidade de voar por não terem predadores nas ilhas (assim, voar é uma perda de energia desnecessária e arriscado, dado que tudo envolta é mar!). Aí, se pensar bem ... ei! Nós já tínhamos eliminado a predação e facilitado a “caça” (na pior das hipóteses, um míope sem óculos só vai comprar mais carne vencida por não conseguir ler as letrinhas da data de vencimento). Mesmo sem óculos, não sofremos estas pressões primitivas mais e, assim, por séculos, olhos menos competentes se acumulam na nossa espécie sem nenhuma consequência reprodutiva. Como se pode notar, há todo um processo que muda como as pressões de seleção natural atuam sobre nós, mas não elimina em nada nem nos torna imunes, às suas ações.

Como também vemos, as mudanças tecnológicas têm muito mais a contribuir na maneira como mudamos as pressões seletivas do que as mudanças biológicas e genéticas que venhamos a engendrar em nossos corpos. Criamos um mundo diferenciado e isso está nos mudando, mas já faz milênios, e em nada afetamos a seleção natural, apenas a afrouxamos em vários aspectos, mas apertamos em outros. Por exemplo, hoje há enormes vantagens adaptativas em genótipos que sejam resistentes a toxinas orgânicas similares à agrotóxicos ou à metais pesados ou poluição atmosférica. São fortes pressões seletivas como também são aquelas que favorecem genótipos que quebram gorduras em taxas elevadas ao invés de acumulá-las (por sinal, um genótipo com raras chances de sobreviver em um mundo primitivo, onde a fome era lugar comum). Para nenhum destes novos cenários ambientais estamos de fato “desenhando” um homem melhor, e muito provavelmente não há como fazê-lo senão por eugenia, ou seja, seleção da “raça superior”, algo associado as piores ideias da Humanidade, o fascismo e o Nazismo. É possível? Sim, é possível tentar ao menos, como em partes do mundo se matam certos fenótipos ou mulheres no nascimento, pode-se decidir por inseminar e permitir crescer só o tipinho que se queira. Infelizmente (brincadeira, felizmente), as condições ambientais mudam totalmente fora do nosso controle, por mais que tentemos impedi-las ou domá-las. Assim, a “raça superior” nazistamente selecionada para hoje, será um fracasso amanhã.

Em outras palavras, não desenhamos nada, não eliminamos a seleção natural, apenas manipulamos intensivamente recursos naturais e genéticos, e em função deste manejo, sofreremos as consequências evolutivas que forem, todas, como de costume, desde a origem da vida.

Concluindo, apenas algo dá alento diante de debates e proposições de divulgação de ciência tão distorcidas assim: é um engano e não está acontecendo. A evolução é um processo populacional, e nada que nossa biotecnologia crie de totipotente para a mudança direcionada de uma pessoa, haverá aplicabilidade em escala para sequer roçar nossa espécie antes do mundo eliminar esta, tecnicamente falando, aberração. Sigamos a vida, como ela é e sempre foi.

04.02.17

A febre amarela em um contexto ecológico e da Biologia da Conservação?


Sérvio Pontes Ribeiro

Painel de Especialista Fundação Renova

Adriano Pereira Paglia (UFMG)

Betânia Paiva Drumond (UFMG)

Eduardo Lázaro de Faria da Silva (Projeto Muriqui)

José Carlos de Magalhães (UFSJ)

Márcia Chame dos Santos (Fiocruz)

Sérgio Lucena Mendes (UFES)

Sérvio Pontes Ribeiro (UFOP)

 

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A febre amarela é uma doença viral transmitida por mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, da Família Culicidae, ao ser humano e a macacos. O vírus da febre amarela não é nativo do Brasil, e foi introduzido em consequência do tráfico de escravos vindos da África. Ele se tornou endêmico (de ocorrência constante e ininterrupta no ambiente) em algumas regiões, como na Amazônia e Centro-oeste. No passado, ocorreram surtos de febre amarela urbana no país, transmitida pelo Aedes aegypti, mas esta forma foi erradicada na década de 1940, por meio de vacinação, obras de saneamento urbano e do controle do vetor. No presente, não há relatos de febre amarela urbana por aqui. Todos os casos registrados no Brasil têm sua origem no ciclo silvestre, que ocorre quando o mosquito pica um macaco infectado e depois uma pessoa, assim transmitindo o vírus, como melhor explicado abaixo.

Os surtos de febre amarela silvestre e qualidade ambiental

Alguns casos de febre amarela foram confirmados em pessoas no Estado de Minas Gerais, moradores de regiões com relatos de mortalidade de macacos, em especial os bugios (ou barbados), do gênero Alouatta. A morte de macacos em reservas naturais e fragmentos florestais, tanto em Minas Gerais quanto no Espírito Santo, vem ocorrendo em grande escala, com relatos de centenas de animais mortos. Porém, até o momento, não há confirmação laboratorial de febre amarela nos macacos infectados no ano de 2017, nesses Estados.

Os surtos de febre amarela são bem conhecidos, tendo sido registrados em diferentes regiões do país, a cada sete anos, aproximadamente. Algumas hipóteses, considerando uma perspectiva ecológica poderiam explicar estas observações, já que os surtos observados ocorrem mais frequentemente em locais próximos a fragmentos florestais pequenos e perturbados. Nesses ambientes isolados, os macacos bugios encontram-se em densidades elevadas e se reproduzem dentro de grupos familiares, se tornando geneticamente mais parecidos. Sabe-se que a susceptibilidade a doenças é maior em uma população adensada e geneticamente homogênea. Em populações mais sustentáveis, existem mais macacos geneticamente diferentes, e esta diferença genética pode estar associada a resistência ao vírus. Nestas condições, a doença não desenvolve em larga escala, evitando-se uma epidemia. Além disso, mutações no vírus da febre amarela podem aumentar ou diminuir a transmissão em uma população de macacos, resultando no padrão de surtos separados por anos de baixa ocorrência da doença. No entanto, para a confirmação desta hipótese são necessárias outras pesquisas.

É importante, ainda, levar em consideração um fenômeno conhecido como “efeito de diluição” da transmissão de agentes infecciosos em ecossistemas ecologicamente saudáveis. Esta situação ocorre em áreas naturais grandes e de boa qualidade ambiental, na qual ocorrem muitas e diferentes espécies de vertebrados. Nestes ambientes, os mosquitos se alimentam tanto de animais que são bons mantenedores quanto de outros que são mal mantenedores do vírus. São justamente as espécies que são mal mantenedoras de vírus que diluem a transmissão para as pessoas e outras espécies, uma vez que os mosquitos que usam essas espécies para obter sangue não será infectado ou, ao menos, apresentará uma carga viral baixa. Em florestas bem preservadas, como há uma maior biodiversidade, também espera-se haver mais espécies de mosquitos, várias delas, não transmissoras da doença. Tais mosquitos (não vetores) podem competir com os vetores pelos locais de postura de ovos, diminuindo a circulação e transmissão do vírus. Da mesma forma, é provável que haja maior quantidade de predadores de mosquitos, como anfíbios, insetos aquáticos, aranhas e outros, o que também ajuda a controlar as populações dos vetores. O efeito da diluição, portanto, presta um serviço ecossistêmico à saúde, ou seja, benefícios fornecidos pelos ecossistemas às populações humanas.

Como já afirmado, estas são algumas hipóteses já observadas na dinâmica da transmissão de outras arboviroses, que podem explicar a origem e os padrões observados nos surtos de febre amarela, para as quais são necessários mais estudos científicos.

O surto atual de febre amarela e recomendações

O evento atual de febre amarela, confirmado em algumas cidades de Minas Gerais é considerado pelas autoridades de saúde como um surto, ou seja, uma ocorrência maior de casos do que a normalmente observada em dada região. Em 2017, até o dia 20 de janeiro, segundo a Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais, foram notificados 272 casos suspeitos da  doença em humanos, sendo 47 casos já confirmados. O total de 25 óbitos causados pela febre amarela já foram confirmados e ocorreram nos municípios de Ladainha, Piedade de Caratinga, Ipanema, Malacacheta, Imbé de Minas, São Sebastião do Maranhão, Frei Gaspar, Itambacuri, Poté, Setubinha, Teófilo Otoni, Ubaporanga.

Para saber mais sobre a Situação epidemiológica em Minas Gerais, em 2017, consulte dos dados da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais. Clique aqui: http://www.saude.mg.gov.br/component/search/?all=Informe+Epidemiol%C3%B3gico+da+Febre+Amarela&area=all

Para saber mais sobre a situação da febre amarela no Brasil, veja os dados do Ministério da Saúde - clique aqui -http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/situacao-epidemiologica-dados-febreamarela

 

Como é a doença

Uma vez que a pessoa é picada por um mosquito infectado com o vírus da febre amarela, o vírus pode começar a multiplicar no organismo dessa pessoa. Logo no início, não são observados sintomas, e esse é o período de incubação, que geralmente dura de 3 a 6 dias. Em algumas pessoas esse período pode ser maior, se estendendo por até 15 dias. A maioria das pessoas infectadas pelo vírus da febre amarela não apresenta sintomas, ou sintomas muito leves, evoluindo logo para cura. Algumas pessoas infectadas, após o período de incubação do vírus, podem ter sintomas como febre, dor muscular, dor nas costas, dor de cabeça, calafrios, perda de apetite e náuseas ou vômitos. A maioria dos pacientes melhora e seus sintomas desaparecem, na maioria dos casos, após 3 a 4 dias do início dos sintomas, e o paciente evolui para a cura.

Por outro lado, em cerca de 15% das pessoas infectadas, após o período inicial de melhora dos sintomas, o paciente pode ter o seu quadro agravado. A febre reaparece e o paciente apresenta icterícia (coloração amarelada na pele e mucosas, como a mucosa dos olhos). O paciente pode queixar-se de dor abdominal com vômitos (aspecto de borra de café) e pode apresentar diarreia. O paciente apresenta quadro de insuficiência hepatorrenal (insuficiência dos rins e do fígado) e hemorragias podem acontecer pela boca, nariz, olhos ou estômago. Cerca de metade dos pacientes que evoluem para esta fase (denominada de tóxica) morre dentro de 10 a 14 dias, e o restante dos pacientes se recupera normalmente. Todos os pacientes que evoluem para a cura, ficam protegidos contra infecções futuras pelo o vírus da febre amarela.

Transmissão

O vírus da febre amarela não é transmitido diretamente de pessoa a pessoa e também não é transmitido diretamente dos macacos para as pessoas. A transmissão só ocorre pela picada dos mosquitos infectados com o vírus. Os mosquitos vetores da febre amarela têm hábito diurno, mas alguns podem estender até o crepúsculo.  Quando uma pessoa é infectada, cerca um a dois dias antes do início dos sintomas, o vírus já pode ser encontrado na corrente sanguínea da pessoa infectada (a denominada viremia = vírus no sangue). Quando o vírus da febre amarela está na corrente sanguínea do macaco ou de uma pessoa, se este indivíduo for picado por um mosquito das espécies que têm a capacidade de transmiti-los, ela passa a ser a fonte de infecção do vírus para o mosquito. Esse mosquito infectado pode então transmitir o vírus a outro hospedeiro (macaco ou ser humano).

Tratamento

Não existe tratamento específico contra a febre amarela, ou seja não existe um medicamento que elimine o vírus do organismo da pessoa infectada. O tratamento é de suporte, ou seja, os sintomas apresentados pelo paciente são tratados para ajudar na recuperação do paciente. Todo paciente que apresentar sintomas suspeitos de febre amarela, principalmente pessoas que vivem em zonas rurais e trabalham ou frequentam ambientes florestados ou que viajaram para áreas de risco, devem procurar atendimento médico imediatamente para que seja feito o diagnóstico e tratamento corretos. É importante que as pessoas com sintomas que podem ser febre amarela relatem ao médico suas atividades e origem de moradia, trabalho ou lazer para que ele considere a infecção como febre amarela, antes que o caso se agrave. Pessoas não vacinadas que frequentam as áreas de risco devem procurar a vacinação e só se expor após 10 dias. Aquelas sem vacina devem se proteger da picada de mosquitos, usando calças e blusas de mangas compridas e uso correto de repelentes.

PREVENÇÃO

A febre amarela pode ser prevenida com a vacinação e com a proteção individual contra picada de mosquitos. A vacina contra febre amarela é eficaz e é a medida mais importante para prevenção e controle da doença. A vacina é produzida no Brasil, pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos Bio-Manguinhos da FIOCRUZ  e  apresenta eficácia acima de 95%.

Por se tratar de uma vacina de vírus  atenuado (um vírus enfraquecido, mas que consegue  multiplicar um pouco no organismo da pessoa vacinada),  em alguns casos a pessoa vacinada pode apresentar reações  adversas . Essas reações podem aparecer cerca  de 5 a 10 dias  após a vacinação com sintomas como febre, dor local, dor de cabeça, dor no corpo. "Atenção especial deve ser dada quando, após administração da vacina de febre amarela, a pessoa apresentar dor abdominal intensa".  Nestes casos, o paciente deve procurar atendimento médico imediatamente.

A proteção contra o vírus da febre amarela é obtida após 10 dias da vacinação, portanto deve-se vacinar ao menos 10 dias antes  de  viajar para área de risco.

A vacina possui algumas contra-indicações: a vacina não é indicada para  grávidas,  crianças com menos de 6 meses de idade; pacientes com imunossupressão (pacientes HIV positivos, pacientes em tratamento com drogas imunossupressoras, pacientes submetidos a transplante de órgãos, pacientes com imunodeficiência primária, pacientes com câncer). A vacina também é contraindicada para pessoas que têm alergia a ovo de galinha e seus derivados, gelatina e outros produtos que contêm proteína animal bovina. Todos estes  pacientes devem procurar avaliação médica e orientação para vacinação. Para saber mais sobre a  vacina, indicações e contra-indicações clique aqui -

http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/427-secretaria-svs/vigilancia-de-a-a-z/febre-amarela/l1-febre-amarela/10771-vacinacao-febre-amarela

Fontes:

-  Ministério da Saúde -

http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/leia-mais-o-ministerio/427-secretaria-svs/vigilancia-de-a-a-z/febre-amarela/l1-febre-amarela/10771-vacinacao-febre-amarela (acesso em  22 de  janeiro de 2017)

- Ministério da Saúde:

http://portalsaude.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretarias/svs/febre-amarela (acesso em  22 de  janeiro de 2017)

- Organização Mundial de Sáude: http://www.who.int/csr/disease/yellowfev/en/ (acesso em  22 de  janeiro de 2017).

 

14.12.16

Por que permitir a volta da mineração da Samarco? Porque é melhor para o meio ambiente.


Sérvio Pontes Ribeiro

Sérvio P. Ribeiro

Prof. de Ecologia e Evolução da Universidade Federal de Ouro Preto.

 

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As relações entre a Sociedade e Meio Ambiente são conflituosas desde as épocas em que agricultura consorciou-se com o comércio, e a produção passou a ser feita não apenas para a subsistência das famílias, mas para trocas e complementação de bens pessoais. Embora este modelo trouxesse mais desgaste ao solo, tais bens trocáveis tinham um motivo: ajudavam enormemente na sobrevivência de cada grupo humano.  Estas relações de complementação de atividades e trocas de produção, portanto, sempre fundamentaram e fortaleceram os laços sociais. Afinal, é a interdependência que nos faz capazes de ampla colaboração, solidariedade e coexistência pacífica. A ampliação desta base de relações entre recursos naturais e grupos humanos, com o aumento da sofisticação tecnológica e científica, resultou na sociedade industrial moderna, como descrito no livro  de Joel Mokyr, “A culture of growth” (leia sobre em http://www.nature.com/nature/journal/v538/n7626/full/538456a.html).

 

Não há dúvida que a escala de impactos aumentou na mesma proporção ou senão, em alguns setores, de maneira exponencial. A mineração está entre as atividades de maior impacto localizado que se pode imaginar haver sobre um ecossistema. Mesmo assim, os pressupostos iniciais de que a extração e comercialização de recursos minerais tem uma razão social, não podem ser esquecidos. Na região de Ouro Preto e Mariana, a paralisação da Samarco traz a mais imediata e palpável consequência da quebra desta relação entre produto-comércio-sobrevivência: o desemprego. Como sociedade, precisamos entender que há de haver mudanças profundas nas relações de produção e risco na mineração, a fim de se evitar de maneira radical as chances de outros desastres ambientais. Porém, qual é o tempo para isto acontecer e qual o risco da ausência de atividades econômicas para o ecossistemas modificados pelo homem moderno? A pobreza, é o primeiro e óbvio impacto.

 

Dito isso, também não há dúvidas de que a produção de minério deveria minimizar o chamado racismo ambiental invés de causá-lo! Racismo ambiental é quando uma parcela, vulnerável, da sociedade herda os impactos e outra, o desenvolvimento. Este fenômeno se evita equalizando os custos ambientais e os benefícios da produção, de forma que os custos não sobrecaiam exclusivamente sobre as comunidades mais pobres, com pouca chance de defesa ou de exigir de mudanças. Na verdade, os benefícios da mineração deveriam, via poder público, minimizar senão eliminar a pobreza onde ela ocorre. Sabemos disto e sabemos que há um caminho a percorrer. Sabemos que a Samarco não pode se esquivar das consequências do rompimento da barragem de Fundão e seu impacto em toda a bacia do Rio Doce e nas comunidades humanas ao longo da mesma. Mas sabemos que cabe ao Poder Público atuar para que os benefícios de royalties, por exemplo, de fato resolvam por completo questões de saneamento básico, saúde e educação, com foco nas populações carentes. Assim, sabemos que a coresponsabilidade é de toda a sociedade brasileira e que somos todos em parte responsáveis pelas mazelas do modelo econômico hoje vigente. O problema é que o não funcionamento da mineração, hoje, agrava todos estes problemas, da pobreza, ao risco futuro de novos desastres, passando pelos projetos de recuperação da bacia, que precisam ser executados.

 

Assim, considerando que não há possibilidades remotas sequer de abandonarmos a “Era do Ferro” amanhã, nem qualquer modelo econômico alternativo capaz de substituir a mineração em poucos anos, o retorno da atividade mineraria da Samarco sanaria dois enormes problemas sociais: o desemprego e a perda de arrecadação dos Municípios. Cabe a nós todos, claro, fiscalizar que estas atividades sejam feitas com mais rigor socioambiental, bem como nos cabe também fiscalizar se as verbas de royalties do Minério sejam devidamente aplicadas pelos Municípios, inclusive na busca de alternativas econômicas para uma sobrevida abundante e segura para além do esgotamento do minério de ferro.

 

Volto no ponto fundamental, em profunda discordância com a maioria dos ambientalista debruçados sobre o problema. Portanto, atuando como cientista, e não um ambientalista no sentido estrito, preciso olhar para os fatos! Se não há outra forma de produção econômica viável agora, não é melhor testarmos uma proposta de produção feita em associação com a deposição de rejeito sobre uma área já profundamente impactada, que é a cava da mineração? Não adianta fingir um mundo melhor! Para muito antes do esgotamento do modelo de mineração, precisamos que se desenvolvam e testem métodos de deposição de rejeitos tecnicamente mais seguros e capazes de poupar a destruição de vastas áreas com a criação de perigosas barragens. Senão mudar este paradigma aqui, diante dos olhos de toda uma sociedade desenvolvida, imaginou a alternativa e seus custos ambientais?

 

Precisamos lembrar que além de Minas e Bahia, onde ainda é possível uma grande expansão da mineração são em regiões remotas, selvagens, e vagamente ou nada estudadas cientificamente quanto à biodiversidade. Em lugares assim, em todo o Globo, desastres ambientais na mesma escala do ocorrido no rio Doce já ocorreram antes, e pouco se foi feito ou anunciado pela grande imprensa. Desastres em locais remotos causam perdas ambientais muito maiores, inestimáveis e, devido a total falta de informações científicas prévias sobre os ecossistemas impactados, irrecuperáveis.  A recuperação da bacia do Rio Doce é em parte possível porque ela foi extremamente bem estudada antes. Sem ilusões, uma recuperação de um desastre deste porte  sempre será parcial, de longo-prazo e mera remediação, mas possível por balizamento científico prévio! No entanto, onde uma riqueza em biodiversidade e serviços ambientais são muito mais relevantes para a humanidade, porém  menos conhecidos, as perdas são sim irreversíveis. Além de que, as contaminações ambientais em zonas remotas dificilmente terão as mesmas chances de serem sanadas como quando acontecem em áreas desenvolvidas.

 

Nesta comparação entre mineração aqui ou lá, não podemos nos furtar do óbvio: o compromisso de sanar a qualidade de água do Rio Doce hoje vai muito além do rompimento da barragem de Fundão, pois sua contaminação ambiental já era vasta e anterior ao desastre. Concluindo, claro que é imperdoável o rompimento de Fundão. Imperdoável, mas se acontecido longe do Sudeste, seria também irrecuperável.

 

Nosso desenvolvimento social e econômico ainda é inevitavelmente dependente da extração de recursos naturais, algo altamente impactantes à natureza. Uma mudança neste paradigma é urgente, mas só pode se dar gradualmente. Até lá, é necessário que se possa minerar de maneira cada vez mais eficiente e segura ao homem e ao Meio Ambiente. Defendo mudanças profundas na sociedade, mas de forma responsável e gradual.

20.11.16

BIÓLOGOS FANTÁSTICOS E ONDE ELES ADOECEM


Sérvio Pontes Ribeiro

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Assim como “Como treinar o seu dragão”, o “Animais Fantásticos e onde habitam” fala, indiretamente, de uma criatura em extinção, e ao meu ver fascinante: o biólogo. Ambos filmes mostram com muita beleza nossa paixão pela vida, em especial pela vida incompreendida pela sociedade e, portanto, perseguida. Mostra como poucos seres em cada comunidade são eternamente picados pela paixão pelo desconhecido, entendem a natureza de criaturas renegadas, e passam o resto da vida a sofrer e lutar pela iluminação de seus iguais quanto a importância de cada espécie que combatemos. No caminho, um mundo inteiro que envenenamos. Assim, mostram como o ser cientista da natureza é tão fundamentalmente ser biólogo, e não somente o químico, o físico ou o matemático!

Porém, somos mais, somos cientistas apaixonados pelas criaturas que abraçamos a estudar. Não sei se somos assim tão diferentes, ou se somos só aqueles que não esqueceram o fascínio que a natureza trás a qualquer um na sua infância (dado o sucesso internacional dos dois filmes que inspiraram este texto, parece óbvio que é a segunda opção). Talvez o biólogo seja aquele que não quis parar de fuçar seu jardim, que não tenha cansado de ser curioso. Não tenha achado um dia que isto é brincadeira de criança.

Somos sensíveis ao sofrimento de nossas criaturas e do mundo do qual nossa existência e saúde dependem. Mas no mundo do “real das outras pessoas”, muitas vezes somos contratados para monitorar o extermínio das espécies e dos ecossistemas que tanto nos fascinam. Resgate de fauna, licenciamento ambiental... tantos e tão importantes, mas associados a um fato muitas vezes cruel: a sociedade vai autorizar perdas irreversíveis. Nós, assim como os veterinários que fazem eutanásia, temos a obrigação de acompanhar estas mudanças. Fato é, são vários os que conheço que adoecem no processo. Não convencemos ainda o mundo a desenvolver de outra maneira.

Ao menos, já convencemos que é importante tentar, é importante pesar as perdas ecossistêmicas como perdas de serviços ambientais que, se preservadas, resultam sim em dinheiro, em desenvolvimento, em qualidade de vida e felicidade social. Já ensinamos a muitos de que precisamos das mais “nojentas” criaturas e de seus ecossistemas saudáveis, para estarmos ricos e bem, coletivamente. Mas falta muito, e sabemos que o tempo é pouco. Para minimizar ao máximo os danos sobre a vida enquanto não alcançamos a perfeição do respeito à Natureza, acumulamos danos e frustrações sobre a nossa vida solitária de biólogos!